Andrea Sabbadini[1]

Veludo azul, de David Lynch (1986), é um filme que segue a trilha dos romances de formação, desenvolvido em meio a uma mistura de investigações criminais e psicológicas, sexualidade transgressiva, amor romântico e violência psicopata – tudo isto apresentado na linguagem cinematográfica única do autor. Trata-se de uma linguagem que apela à nossa curiosidade consciente para compreender a narrativa do enredo e o comportamento dos personagens, mas também nos convida a nos relacionar com nossos próprios medos e desejos inconscientes mais profundos.

Escrito e dirigido por Lynch em 1986 – após outros filmes igualmente originais como Eraserhead (1977), O homem elefante (1980) e Duna (1984) – Veludo azul (1986) é um trabalho magistral que proporciona material suficientemente intenso para engajar a nós, espectadores, tanto visualmente quanto emocionalmente. Ao mesmo tempo, foi criado de maneira tão engenhosa que nos permite mergulhar neste material sem que sejamos excessivamente perturbados por ele.

Neste processo, o filme também explora – como o fará quinze anos mais tarde, Cidade dos sonhos (2002) – alguns aspectos desagradáveis das entranhas da sociedade provinciana dos Estados Unidos, às vezes enriquecendo este retrato com observações irônicas a respeito de dinâmicas familiares, num espaço que remete a algumas pinturas de interiores abafados de Edward Hopper. Nas palavras de Knafo e Feiner (2002), Lynch “inverte o ‘sonho americano’ – a visão idealizada de uma vida, confortável, ordenada, segura e moral – e […] desvaloriza a ilusão de bondade que sustenta a segurança e o conforto de uma pessoa” (p. 1445). O quadro resultante é o contraste entre um artificial e superficial verniz de respeitabilidade pequeno-burguesa e um mundo subterrâneo de indizíveis segredos purulentos.

Veludo azul (Lynch, 1986) começa com uma cortina de veludo azul cobrindo toda a tela. A trama nos traz à pequena cidade americana de Lumberton (imaginária, conquanto uma cidade real do mesmo nome de fato exista na Carolina do Norte). Aqui, Jeffrey Beaumont (interpretado por Kyle MacLachlan), um jovem rapaz descrito por Lynch como “tanto inocente, quanto curioso”, retorna da universidade para viver com sua mãe e cuidar da loja de ferramentas de seu pai após a hospitalização deste. A descoberta acidental por parte de Jeffrey de uma orelha humana decepada e infestada de insetos num gramado leva-o a encontrar o detetive John Williams, encarregado da investigação do caso, e sua filha Sandy (Laura Dern). Bisbilhotando seu pai, Sandy descobre que a cantora de cabaré Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) – uma espécie bastante incomum de femme fatale – é suspeita de estar de alguma forma envolvida com o mistério da orelha decepada. Ela passa esta informação a Jeffrey e, juntos, eles vão ao Slow Club para ouvir Dorothy cantar Blue velvet (Veludo azul), uma música popularizada nos anos 1960 na versão de Bobby Vinton. Com o auxílio ambivalente de Sandy, Jeffrey invade o espaço pessoal e a vida privada de Dorothy. Escondido dentro de um armário no apartamento dela, ele testemunha o abuso verbal e sexual de Dorothy pelo chefe de gangue e psicopata-mor Frank Booth (Dennis Hopper). O criminoso, tendo sequestrado o filho e o marido de Dorothy, usa seu poder perverso para controlá-la. Descoberto por Frank, Jeffrey precisa – então – se envolver bravamente em confrontos assustadores com ele. Para complicar as coisas ainda mais, Jeffrey se envolve eroticamente com Dorothy e romanticamente com Sandy, até que a narrativa se resolve com um deliberadamente pouco convincente “final feliz”, e Veludo azul (Lynch, 1986) termina com aquela mesma cortina de veludo azul do início.

Gostaria de sugerir que os protagonistas de Veludo azul (Lynch, 1986) são adultos “polimorfo perversos”, provavelmente advindos das crianças “polimorfo perversas” descritas no segundo ensaio dos três apresentados em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (Freud, 1905/1953, p. 191). A palavra “perversão” é altamente carregada, além de intrínsicamente ambígua. Perversões sexuais referem-se a uma variedade de fantasias – de fetichismo a necrofilia, além das moedas de duas faces voyeurismo/exibicionismo e sado/masoquismo – às vezes concretizadas em atividades envolvendo relações com outras pessoas, mas principalmente relegadas aos cantos obscuros da mente inconsciente.

Psicanalistas trabalhando com pacientes perversos estão acostumados a experimentar na contratransferência algo análogo – ou, mais comumente, complementar – ao que seus pacientes expressam, como uma curiosidade excessiva em relação a suas atividades exibicionistas, ou alguma crueldade desnecessária na interpretação de sua atitude masoquista. Isto pode ser inevitável e, assumindo que terapeutas notarão e trabalharão essas questões em si mesmos ao invés de expressá-las, poderia representar uma ferramenta indispensável para a compreensão do mundo interno do paciente.

Trabalhos de ficção comumente retrataram personagens cujas perversões – sejam elas apenas imaginadas ou explicitamente concretizadas – eram aspectos significativos de sua existência: em livros, no palco, ou na tela. Focando apenas no cinema, os nomes de Hitchcock (Psicose, 1960), Powell (A tortura do medo, 1960), Buñuel (A bela da tarde, 1967), Bertolucci (La luna, 1979), Almodóvar (Matador, 1986) e Haneke (Caché, 2005) vêm à mente como autores que, entre outros, exploraram tais temas com especial sutileza, coragem e originalidade. Seus filmes, sugiro, introduzem nos espectadores uma certa quantidade de identificação com o lado perverso dos personagens que retratam, mas também lhes permitem distanciar-se um pouco para refletir sobre o significado do comportamento desses personagens, ao invés de fazerem com que se sintam soterrados (muito estimulados, confusos ou amedrontados) por ele.

Acredito que isto se aplique a Veludo azul de Lynch (1986), um filme totalmente permeado por perversões. Sandy bisbilhota as conversas particulares de seu pai a respeito de suspeitos conectados ao caso da orelha decepada; Jeffrey, voyeurísticamente, espiona as atividades de Dorothy de dentro de um armário através de uma porta veneziana; Dorothy expressa sua própria necessidade masoquista, após seduzir Jeffrey, ao fazer com que ele a agrida; Frank entrega-se a ataques sádicos verbais e físicos contra Dorothy e qualquer outra pessoa à sua volta. Toda a atmosfera do filme e o comportamento de seus protagonistas são profundamente perversos.

Das diversas formas de perversão explicitamente retratadas (como o sadismo de Frank) ou apenas aludidas (como seu fetiche por veludo azul), gostaria de focar na que eu acredito permear por completo – e, até certo ponto, estruturar – todo o filme: voyeurismo (e, por implicação, seu elemento complementar, exibicionismo). Já sugeri em outro texto que o termo voyeurismo descreve, na verdade, dois fenômenos diferentes, porém não sempre facilmente distinguíveis, que chamei de secreto e conspiratório. “Voyeurismo secreto”, escrevi (Sabbadini, 2014a):

É uma forma narcisista de penetração agressiva diretamente relacionada a fantasias de cena primária, e envolve gratificação ao assistir objetos que, por sua vez, não sabem estarem sendo assistidos […] Voyeurismo conspiratório, por outro lado, envolve a experiência de prazer da atividade de assistir objetos que têm plena consciência de estarem sendo observados […]. Esta é uma forma mais sofisticada de perversão porque implica certo reconhecimento de que os outros não são apenas extensões do próprio self, mas pessoas reais respondendo às atividades voyeurísticas do sujeito, e potencialmente obtendo elas próprias satisfação exibicionista ao serem observadas. (p. 103)

Em resposta à fala de Jeffrey contando ao inspetor Williams que está “muito curioso” a respeito da orelha decepada, Sandy bisbilhota as conversas de seu pai – uma cena não mostrada no filme, mas implícita pelo que acontece em seguida –, representando uma instância de voyeurismo secreto. Jeffrey assistindo a Dorothy ser forçada a um encontro sexual ritualizado com Frank é uma instância de voyeurismo conspiratório: Dorothy tem plena consciência da presença de Jeffrey no armário, e Jeffrey tem plena consciência de que ela tem plena consciência; mas este é também um exemplo de escopofilia secreta ao passo que Frank desconhece a presença encoberta de Jeffrey no quarto. Excitado e horrorizado ao mesmo tempo – assim como uma criança exposta à cena primária no quarto dos pais –, Jeffrey continua assistindo, e nós com ele, já que posição fixa da câmera nos convida a identificarmo-nos com ele. Seria possível argumentar que tanto Jeffrey (que teve de se esconder para evitar ser descoberto por Frank), quanto Dorothy (que teve de se submeter ao abuso e estupro de Frank) foram forçados a criar tal cenário voyeurístico/exibicionista, mais do que o construíram voluntariamente para seu próprio prazer sexual. Entretanto, é claro que, mesmo se esta não era originalmente uma escolha consciente, ambos obtiveram alguma gratificação perversa ao se encontrarem em tal situação.

Seria fácil descrever Dorothy como escrava sexual de Frank ao entendermos que ele pode controlá-la ao manter seu marido e seu filho reféns. Assistimos a ele abusando Dorothy violentamente, seu rosto distorcido em um sorriso grotesco (um que poderia ter sido imaginado por Francis Bacon) e coberto por uma máscara pela qual ele respira nitrato de amila (uma droga que induz um estado de euforia e alucinações visuais). Mas sua sexualidade sádica e abastecida por drogas é complementar à associação masoquista de Dorothy entre prazer e dor; enquanto Frank a estupra, a câmera de Lynch dá um zoom na expressão quase extática do rosto dela. Pouco depois desta cena, vemos Dorothy seduzir Jeffrey implorando: “Me bate, me bate, ME BATE!”. Aparentemente, ela só conseguiria atingir o orgasmo – provavelmente por razões originadas em alguma experiência traumática na infância – quando sentindo-se machucada e humilhada. Jeffrey, relutante a princípio e culpado posteriormente, obedece seu pedido, compreendendo talvez que “a condição para sua iniciação sexual implica a aceitação de seus impulsos sádicos” (Knafo e Feiner, 2002, p. 1448).

Como forma de gratificar essas várias formas de sexualidade perversa, o poder desempenha um papel importante. O poder de violência bruta, o poder de ameaças (Dorothy, vestindo uma camisola de veludo azul, segura uma faca afiada em sua mão direita enquanto desliza sua mão esquerda dentro da cueca de Jeffrey), o poder advindo da indução de medo em outros para controlá-los e dominá-los, ou para obter o que se quer deles: algo de que tiranos têm plena consciência, sejam eles déspotas em regimes ditatoriais ou, como Frank, chefes de gangues criminosas.

No entanto, e o poder tirânico de medos internos, daquelas forças cruéis e controladoras que dominam as mentes de indivíduos e fazem deles escravos de fantasias paranoides? Geralmente não notado por outros, o poder de tais fantasias pode, de maneira dramática, criar nas pessoas afetadas por elas a experiência aterrorizante de se viver no inferno. Isto pode ser o caso até do mundo habitado pelo próprio Frank – um universo paranoide e psicótico ao qual ele só consegue sobreviver projetando-o forçosamente sobre os outros. Um aspecto disso é sua incapacidade de pensar em termos não concretos; por exemplo, ele só consegue entender em tais termos o sentido metafórico do “veludo azul” na música-tema de Dorothy. Vemo-lo fetichistamente acariciando um pedaço de veludo azul quando a ouve cantar no Slow Club; colocando o cinto de veludo azul da camisola de Dorothy na boca dela e dele enquanto a estupra; e enfiando mais um pedaço de veludo azul na boca do marido assassinado da cantora – o homem, como então descobrimos, cuja orelha esquerda tinha sido decepada. Alvejado por Jeffrey, Frank morre segurando a camisola de Dorothy em seus braços.

Com referência à visão de Freud a respeito das “duas correntes cuja união é necessária para assegurar um comportamento amoroso completamente normal”[2] (Freud, 1912/1957, p. 180), Bodin e Poulsen (1994) consideram Veludo azul (Lynch, 1986):

Um conto psicológico sobre a tentativa do jovem Jeffrey de encontrar uma solução em que as duas correntes de afeto e sensualidade formem uma síntese e, assim, resolvam seu complexo de Édipo […] de uma sexualidade infantil para uma sexualidade genital. (p. 166)

Outros autores psicanalíticos que escreveram a respeito do filme também focam nas tentativas de Jeffrey de lidar com suas, ainda não resolvidas, questões edípicas. Sekoff (1994) sugere que:          

Os sinais e símbolos do nosso sonho-filme apontam corporalmente para um drama edípico. Tão corporalmente – com seus pais desajustados, mulheres sedutoras, desejos proibidos e ameaças castradoras – que o sonho-texto parece transparente. […] Quando Sandy pergunta a Jeffrey: ‘Você é um pervertido ou um detetive?’, ela astutamente nos aponta para a estrutura latente do sonho-narrativa. É uma pergunta retórica, já que podemos ver que a busca do detetive incorporará uma solução perversa. (p. 423)

Jeffrey, eu acrescentaria, é tanto detetive quanto pervertido – na medida em que todos os detetives são, digamos, também pervertidos (se não vice-versa). Aqui, pois, a pergunta de Sandy estaria relacionada não apenas a Jeffrey, mas também a seu pai, que escolheu a detecção de crimes como sua atividade profissional. E estaria relacionada a nós, espectadores curiosos de Veludo azul (Lynch, 1986).

Knafo e Feiner acrescentam que “assim como no caso de Édipo – cuja necessidade de penetrar o enigma da esfinge leva-o a desvendar seus próprios crimes – as investigações de Jeffrey no obscuro ‘mundo subterrâneo interno’ levam-no a descobrir a mesma escuridão em si mesmo” (Knafo e Feiner, 2002, p. 1445). A tentativa de Jeffrey de solucionar um mistério e, assim, também uma busca por sua própria identidade e masculinidade, uma busca que começa a aproximá-lo da afetuosa “virgem Maria” Sandy, assim como da “prostituta” Dorothy – a vítima pervertida que ele tenta resgatar com seu amor por ela. “Me machuca!”, ela lhe implora. “Não, eu quero te ajudar!”, ele responde ingenuamente. Fantasias de resgate, incidentalmente, são motivadores poderosos em muitas relações íntimas (inclusive psicanalíticas) e geralmente oferecem tramas interessantes para filmes (Sabbadini, 2014b, pp. 80-89).

A orelha decepada que Jeffrey encontra num gramado exige algumas reflexões a mais. Ela poderia ser considerada apenas um tipo de MacGuffin hitchcockiano, tendo como única função colocar em movimento os eventos que se seguem, mas sendo em si mesma insignificante. No entanto, o fato de que, de todos os possíveis objetos, aquele que Jeffrey encontra parcialmente escondido na grama é uma parte do corpo (e não, por exemplo, uma maleta cheia de dólares) carrega este objeto de conotações emotivas especiais para Jeffrey, e para os espectadores. De fato, tal objeto é “um lembrete bastante substancial de que a castração pode se tornar realidade. Se uma orelha pode ser decepada, também o podem outras partes do corpo” (Bodin e Poulsen, 1994, p. 166).



[*] Uma versão deste artigo foi apresentada na conferência “Freud/Lynch: Behind the Curtain” [Fora de Cena] no Rio Cinema, em Londres, em 26 de maio de 2018.

[1] Miembro de la Sociedad Psicoanalítica Británica.

[2] N. do T.: Tradução de J. Salomão. A tradução se corresponde a Freud, S. (1970). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. 11, p. 164). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912).

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