Marion Minerbo
A pandemia que se abateu sobre o planeta pode ser vista como trauma coletivo. Veio sem aviso prévio, nos encontrou sem defesas, tirou nosso chão, quebrou nossas pernas. É um tipo de violência que não conhecíamos, e por isso mesmo é difícil reconhecê-la como tal. Poderíamos denominá-la violência branca, por analogia a angústia branca, termo com que Green descreve o sofrimento psíquico mudo, invisível e silencioso das patologias do vazio.
A violência branca – e o correlato trauma branco – é uma violência sem sangue, silenciosa, invisível, mas letal. Do ponto de vista psíquico, produz uma efração não só pelos súbitos efeitos devastadores em nossas vidas, mas também porque é algo que não faz sentido para nós no século XXI: não temos repertório para lidar com isso. Para mim, a pior parte do trauma branco é tentar ficar de pé sobre um chão de areia movediça. Viver diariamente neste grau de incerteza a respeito de tudo é exigir demais do pobre ser humano.
Agora temos que conviver com a angústia da ameaça de morte lenta por asfixia. O vírus invisível sequer chega a ser um “inimigo” a combater, o que pelo menos nos colocaria numa posição mais ativa. O isolamento físico não fazia parte do repertório humano, exceto como castigo máximo, nas solitárias das prisões. Fronteiras fechadas eram inimagináveis para nós. Os enquadres que nos davam sustentação psíquica cotidiana desapareceram. Sem falar nas consequências da devastação econômica que nos aguarda.
O traumático nos obriga a entrar em contato com o desamparo, a vulnerabilidade e a absoluta falta de garantias com relação ao futuro. E certamente deixa marcas, que ficam inscritas em nosso psiquismo. Qual será o destino delas?
Eu me pergunto se alguém que passou por uma guerra consegue voltar a viver “como antes”. Não me refiro a retomar as atividades cotidianas, mas à experiência subjetiva de cada um. Dá para metabolizar o horror, ou o que não foi integrado vai continuar nos assombrando pela vida afora?
A experiência subjetiva de quem já passou fome deve ser diferente daquela de quem nunca sofreu privações dessa ordem. Talvez olhe para seu prato de comida com a consciência aguda de que ele poderia não estar lá. Talvez viva constantemente com medo de voltar a passar fome. Talvez a imagem de uma criança faminta se imponha entre duas garfadas.
E quem passou por uma pandemia? Será possível recalcar tudo isso e continuar vivendo tranquilamente, como se não pudessem vir outras a qualquer momento? Ou viveremos em constante paranoia, evitando aglomerações, vendo sinais de perigo em cada espirro? Ou iremos incorporar períodos de isolamento em nossas rotinas, adaptando-nos ao novo padrão – o novo normal? Como sabemos, os destinos do trauma branco vão depender da história emocional de cada um, bem como dos recursos psíquicos disponíveis.
É possível que as inscrições do traumático não desapareçam nunca. Talvez a consciência permanente de que tudo é efêmero nos ajude a aproveitar e a sentir gratidão pelo que temos. Talvez, ao contrário, a angústia nos impeça de aproveitar o que temos, enquanto temos. Viveremos dentro de um pesadelo constante.
Numa visão mais otimista, podemos pensar que há traumas que cicatrizam. Dizem que o tempo cura tudo. Talvez seja possível elaborar e integrar a experiência traumática ao longo do tempo. A vida pode, sim, voltar a ser “como antes”. Em alguns aspectos, pode até ficar mais rica, se pudermos incluir em nosso repertório psíquico o que descobrimos durante o período de crise. Podemos voltar a confiar na estabilidade do mundo, usufruindo desta ilusão necessária para reconstruir nossas vidas.
Ou ainda, podemos pensar que a cicatriz pode se abrir a qualquer momento em situações análogas, e nossa absoluta vulnerabilidade pode voltar a nos assombrar quando menos esperamos.
Quem seremos depois de tudo isso?
Quem viver (!), verá!
Marion Minerbo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Trabalho originalmente publicado no Observatório Psicanalítico da FEBRAPSI