Gabriela Levy1

O exílio foi, talvez, a questão primeira, pois o exílio foi a palavra primeira – o antes-do-exílio é o antes-da-palavra.
Edmond Jabès, 1980

A doença do exílio é a perda do fora.
Fethi Benslama, 2004

Anoção de exílio permeia implicitamente todo o pensamento psicanalítico enquanto paradigma da estrangeirice, isto é, do descentramento subjetivo e da dialética entre identidade e alterida- de inerentes à constituição psíquica. Dimensão marcante da experiência individual e coletiva universal. Como afirma Fethi Benslama, o exílio – em sua riqueza polissêmica – “coloca em xeque a totalidade do sujeito em sua existência e em sua relação com seus significantes fundamentais” (Benslama, 2004, p. 25).

Contudo, o real da vivência de refugiados e migrantes, coloca-nos muitas vezes frente a dramáticas situações-limite nas quais a abordagem do exílio exclusivamente, enquanto descentramento psíquico, torna-se insuficiente para entender o sofrimento específico de sujeitos cuja alteridade é redobrada e exacerbada por experiências de deslocamentos, violências e alienação cultural.

Nos últimos anos, observa-se no mundo um aumento exponencial de migrações e deslocamentos provocados por guerras, conflitos, pobreza, situações de degradação e mudança climática ou, simplesmente, pela busca de melhores oportunidades de vida. Este fenômeno se traduz a cada passo em trajetórias de vida familiar e individual particularmente traumáticas, nas quais mulheres e crianças exiladas são atores especialmente vulneráveis. As estimativas da Organização das Nações Unidas (2016) indicam, dessa maneira, que mulheres e meninas representam quase metade dos 244 milhões de migrantes e metade dos 20 milhões de refugiados no mundo.

Neste contexto, a proposta do presente Dos- siê é, em primeiro lugar, dar voz a um conjunto de mulheres que vivenciaram a brutal experiência física e psíquica do desenraizamento e do exílio; experiência que abalou ao mesmo tempo suas referências culturais, seu corpo e sua condição feminina. A partir disso, entre exposição de casos, depoimentos e reflexões teóricas, este conjunto de artigos têm por ambição também, despertar a curiosidade dos leitores para a riqueza humana e a criatividade conceitual de uma nova e muito necessária “clínica do exílio”2.

O artigo que abre o Dossiê, “Mulher de pedra, mulher de prantos, mulher de revolta” de Marie-Caroline Saglio-Yatzimirsky, faz-nos ouvir a voz comum de três singulares exílios de mulheres da

Ásia Meridional. Neha, paquistanesa, Sonia, bengalesa e Alaya, afegã, teste- munham sobre “exílios de violência”, “exílios de urgência” onde a decisão de partir é uma “escolha forçada” sem a qual correriam risco de vida. A autora, através das histórias de vida destas três jovens mulheres e do relato do seu trabalho clínico com elas, mostra como apesar das provas extremas de sofrimento, perda e separação, a experiência traumática do exílio vai sendo elaborada e integrada em suas histórias individuais, permitindo assim abrir “outras possibilidades de ancoragem cultural e psíquica” e de expressão do feminino.

Em segundo lugar, mudando de área geográfica e acompanhando nesta ocasião os relatos da terrível travessia de imigrantes africanas que desembarcaram em solo italiano, Simona Taliani se interroga sobre a prática clínico-analítica com pacientes que tiveram que lidar com a violência do trauma e da exclusão, tanto em seu país de origem, quanto ao longo de seu deslocamento no país de acolhimento. A autora alerta como estes casos impõem a necessidade de repensar noções psicanalítcas clássicas e de manter uma escuta aberta às vicissitudes históricas do trauma, assim como às repetições que exigem algo novo.

Esta abertura ao novo é o que atesta a intensa e movimentada vida de Marie Langer, uma das pioneiras da psicanálise no rio da Prata, descrita aqui por seu genro José Luis González Fernández. O autor nos relata a história dos sucessivos exílios e reinvenções pessoais vividos por Marie Langer: voluntária na Guerra civil espanhola, refugiada na atual República Checa, exilada durante a Segunda Guerra Mundial no Uruguai, migrante econômica na Argentina, e novamente refugiada – desta vez no México – durante a ditadura militar para, afinal, fazer um último deslocamento de retorno para morrer na Argentina, sua terra de adoção.

Nesse caminho, e fazendo eco à singular trajetória de Marie Langer da Europa à América Latina, apresentamos também um comovedor relato de exílio da fotógrafa brasileira Claudia Andujar no qual conta lembranças de sua fuga do nazismo, desde a Hungria até a Suíça, junto à sua mãe, enquanto quase toda sua família paterna havia sido deportada aos campos de concentração. Claudia Andujar evoca também sua migração a Nova Iorque e finalmente sua ida a São Paulo, cidade em que decide se radicar desde meados da década de 1950, e na qual se torna uma grande fotógrafa com uma profunda experiência de engajamento estético e político ao lado dos índios yanomami na Amazônia brasileira, povo ameaçado de extermínio durante a ditadura militar.

Finalmente, apresenta-se nesta série de depoimentos pessoais sobre o exílio, o texto de Jobana Moya, mulher quéchua e ativista de um coletivo de mulheres imigrantes. Seu texto trata do desamparo de tornar-se mãe numa terra e cultura diferentes, porém dessa vez trata-se de uma conjuntura contemporânea e interna à nossa região (do altiplano boliviano a São Paulo). Ela descreve assim o choque entre diferentes representações e práticas corporais relacionadas à gravidez, ao parto, e ao puerpério, reivindicando neste contexto a necessidade de um modelo de saúde intercultural que possa valorizar a diversidade de saberes.

A história da psicanálise e sua expansão estão marcadas, como sabemos, pelas experiências do exílio: o de Freud e de muitos de seus contemporâneos durante a Segunda Guerra Mundial ou, mais próximo de nós, os exílios impostos pelas ditaduras militares na América Latina nos anos 1970, e mais recentemente pelas atuais grandes crises migratórias. Fechamos então este Dossiê com um breve texto de Adriana Prengler, Chairdo “Comité de Realocação de Psicanalistas Emigrantes” da Associação Psicanalítica Internacional (IPA, por suas siglas em inglês), sobre o importante trabalho desenvolvido por esse comité para ajudar e facilitar o processo de reinserção profissional de membros e candidatos da IPA que estejam vivendo atualmente os desafios do exílio.

Referências

Assembleia Geral das Nações Unidas (2016). Mujeresrefugiados y migrantes. Disponível em: http://www.unwomen.org/es/news/ in-focus/women-refugees-and-migrants
Benslama F. (2004). Qu’est-ce qu’une clinique de l’exil ? L’évolution psychiatrique, 69,23-30.
Douville, O. (2014). Les figures de l’Autre. Paris: Dunod. Jabès, E. (1980). Le livre des ressemblances. Paris: Gallimard.
Saglio-Yatzimirsky, M.-C. (2018). La voix de ceux qui crient. Paris: Albin Michel.

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Notas

Notas
1 Asociación Psicoanalítica del Uruguay.
2 Ver: Benslama (2004), Douville (2014), Saglio-Yatzimirsky (2018).

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