Lúcia Palazzo1
Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.
Ditado Iorubá
Há 10 anos a Revista Calibán foi lançada com uma nova perspectiva de criação, entre tradição e invenção, consolidando-se como a revista oficial da Federação Psicanalítica da América Latina – FEPAL. Durante esse período o movimento psicanalítico de nossa região sofreu o impacto dos acontecimentos sociopolíticos e culturais, dando lugar à uma rica produção cientifica espelhada nas várias edições que culminaram, em 2022, na celebração dos 10 anos de existência da revista neste novo formato.
Pensar esta publicação como elo entre psicanálise e arte, e como veículo de inclusão de grupos distintos foi muito importante, pois rompeu com a concepção dualista que separa e põe em conflito corpo e mente, psiquismo e cultura, realidade e ficção. Em Calibán as formas tradicionais e, também, os novos modos do fazer psicanalítico se apresentam, sem perder o vigor e o compromisso com a verdade do inconsciente.
A Sociedade Brasileira de Psicanálise do RJ – SBPRJ, em parceria com o Museu de Arte do Rio, MAR, promoveu em anos anteriores uma série de debates em torno dos temas contemporâneos que tocam a nossa humanidade. Contamos com a valiosa parceria de Paulo Herkenhoff, na época diretor cultural do Museu, e com a sua equipe, criando durante três anos consecutivos o histórico Simpósio Calibán no Rio! Com uma curadoria ímpar e sensível proporcionou um ambiente de liberdade e criatividade, talvez, nunca visto dentro dos muros de um museu. Muros invisíveis. Uma quebra de paradigma que ofereceu a possibilidade da cidade e de seus habitantes tomarem posse do lugar concreto e simbólico de criação e experimentação. Essas fronteiras imaginárias se esmaecem com a beleza das narrativas discursivas tão bem alimentadas pela concepção de um Museu em Processo, processos singulares que movimentam e agregam a partir das diferenças. Não há processo de subjetivação criativa desvinculado da cultura, como espaço de liberdade de Ser, democrático, com afetividade e confiança.
Hoje contamos com a parceria do Largo das Artes, outro porto seguro que abriga Calibán, como espaço vazio a ser conquistado e povoado de arte e psicanálise. Com a sensível curadoria de Felippe Moraes, a hospitalidade de Miguel Sayad, a parceria de Carolina Garcia, editora-chefe, e a competente coordenação geral do simpósio por Samantha Nigri e Fernanda Borges, além da querida equipe de produção.
No Brasil, o Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald de Andrade,ou, ainda, o Manifesto Calibán, continuam a instigar os nossos sonhos para além de uma psicanálise intramuros e impermeável ao sofrimento coletivo, que insistem em assombrar as fronteiras estabelecidas pelos cânones de teorias euro centradas. Transitamos pelas bordas escorregadias, pelas frestas entre o estranho e o familiar que brotam das terras do inconsciente latino-americano, que produzem mundos singulares tão diversos quanto criativos nas suas diferenças, que produz vida onde não poderíamos imaginar sobrevivência.
Calibán é a força da terra e das populações latino-americanas, indígenas e negras. Como diz a canção de Caetano Veloso, Um Índio, virá e descerá de uma estrela colorida e brilhante:
Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.
Lúcia Palazzo
Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
Notas
↑1 | Apresentado na Celebração do 10º Aniversário do Calibán em Rio, Outubro 2022. |
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