Raul Antelo1
“Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa”.
“Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem”.
“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
Primeira questão, após essas reivindicações esparsas do manifesto: discriminar Antropofagia de Modernismo. Oswald de Andrade disse que os antropófagos não são modernistas. É completamente inútil para eles rejuvenescerem uma mentalidade insatisfatória porque eles, ao contrário dos modernistas, praticam uma revolução metafísica, “revolução de princípios, de roteiros, de identificação”2. Nessa mesma entrevista, “A psicologia antropofágica”, concedida a O Jornal do Rio de Janeiro, em agosto de 1929, Oswald argumenta que
O homem, por uma fatalidade que eu chamo de “lei de constância antropofágica”, sempre foi o animal devorante. Mas as religiões de salvação o desidentificaram, levando-o aos piores desvios (catolicismos, teosofia, puritanismo, comunismo ideológico). O ciclo primitivista, poderosamente escorado em Bergson e os intuitivistas; em James e todos os pragmatistas, inclusive Maurice Blondel, Spengler e todos os profetas do Declínio, Lênin e todos os quebradores de Sèvres; em Shaw, Wells; na jurisprudência sentimental de Berolzheimer; nos movimentos de anticodificação; no Surrealismo e todos os documentais; no behaviour; na tendência presentista antigenética, da Escola de Marburgo; na anarquia civilizada de Krishnamurti, como na revolução integral das expressões — poesia, artes, arquitetura —; na América do Norte inteira, com o cinema, o divórcio, o box, o crédito e, sobretudo, o apetite: o ciclo primitivista é invencível. Nós, brasileiros, oferecemos a chave que o mundo cegamente procura: a Antropofagia.
Nem cristãos nem comunistas
O cristianismo felizmente agoniza numa terra preparada de todo lado para a Descida Antropofágica. E como o Brasil colonial timbra em ser o país mais atrasado do mundo, é agora que se lembraram de erigir num morro do Rio o Monumento cristão.
Retificação de Freud
A Antropofagia só pode ter ligações estratégicas com Freud. Ele é uma das grandes energias do ciclo nascente. Mas Freud é apenas o outro lado do catolicismo. Como Marx é o outro lado do capitalismo. Como os comunistas são os novos burgueses da época transitória. Não foi à toa que eu disse outro dia, a Tristão de Athayde, que antes de Hegel e da dialética nunca houve filosofia. E mais que filosofia, nunca houve compreensão.
Mas [a] Antropofagia que baseia no homem natural a construção da sociedade futura não pode deixar de ver alguns erros profundos de Freud. O recalque que produz em geral a histeria, as nevroses e as moléstias católicas não existem numa sociedade liberada senão em percentagem pequena ocasionada pela luta. E o desafogo direto, tornado possível, remedeia tudo.
Cabe a nós, antropófagos, fazer a crítica da terminologia freudiana, terminologia que atinge profundamente a questão. O maior dos absurdos é, por exemplo, chamar de “inconsciente” a parte mais iluminada pela consciência do homem: o sexo e o estômago. Eu chamo a isso de “consciente antropofágico”. O outro, o resultado sempre flexível da luta com a resistência exterior, transformado em norma estratégica, chamar-se-á o “consciente ético”.
Freud católico
As experiências das teorias de Freud numa sociedade natural trariam também a derrocada de outros resultados da psicanálise. Que sentido teria num matriarcado o complexo de Édipo?
A Traumdeutung interpretada antropofagicamente reduziria o sonho católico de Freud ao palpite de S. Cipriano.
O documental índio (o sonho augural e estratégico em Amorim, Barbosa Rodrigues, Couto de Magalhães, Macunaíma) é, mais do que tudo, o desenvolvimento de um estado de luta que a memória desperta. Nada tem com o sonho em função do “pecado sexual” que coloca Freud nos quadros do catolicismo.
Don Juan na tribo
O que poderia perfeitamente elucidar o abismo que existe entre a mentalidade cristã (sobre a qual a pesquisa de Freud é notável) e a outra, a antropofágica, seria um desembarque de Don Juan em um acampamento poligâmico de Kayapó, apesar do atestado de conduta que passou a esses e outros excelentes silvícolas brasileiros a reverendíssima sabedoria do padre Schmidt, de Viena (Semana Etnológica — Milão, 1925).
As piscadelas do herói em função do pecado sexual teriam um sucesso de comicidade incalculável ante a liberdade camarada da tribo3.
Definindo que “a descida antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religiosa. Ela é tudo isso ao mesmo tempo”, Oswald, oculto pelo pseudônimo de Japy-mirim, diz que “a Antropofagia identifica o conflito existente entre o Brasil Caraíba, verdadeiro e o outro que só traz o nome. Porque no Brasil há de distinguir a elite, europeia, do povo brasileiro. Ficamos com este, contra aquela (…) E assim havemos de construir no Brasil a grande nação brasileira”4. Ou como diz o Manifesto:
“Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”.
Hegel e Haiti, resumiria Susan Buck-Morss. Essa dualista construção antropofágica, como crítica intransigente da razão prática, encontra, porém, associados a ela, dois comparsas insuspeitos de aparecerem com outros modernistas: em primeiro lugar, o marquês de Sade (“Agora pergunto se é justa a lei que ordena aquele que nada tem, o respeito da propriedade daquele que tem tudo”5 ), apontando a contradição insolúvel da ordem, que transforma a felicidade, onde sancionada, em sua paródia, e só a produz onde ela a proscreve, mostrando, além do mais, o entendimento sem direção externa, isto é, o sujeito liberto de toda tutela.
E, por outro lado, temos o trilema niilista de Lao Tsé (“Quando todos sabem que o bom é bom, já aí temos o mal. Porque o ser e o não-ser se engendram reciprocamente”6 ). A transcendência, nesse caso, é meramente relativa e não representa mais do que uma absolutização da imanência. A reivindicação do vazio taoísta, ser e não-ser ao mesmo tempo, tal como apontava Einstein, baseada na premissa de que “o chinês não conhece o verbo ser”, é dada pelo contraste, ou seja, pela unidade incondicionada dos opostos, e mostra uma estrutura arquitetônica própria do sistema kantiano, porém associada agora às pirâmides ginásticas das orgias de Sade e aos princípios das lojas maçónicas burguesas, o que anuncia uma forma de organização integral da vida, desprovida de qualquer fim determinado. Sua linha de fuga, como se compreende, é a “aproximação do terror”7, i.e., a inclusão excludente, tanto de das bloße Leben ou vida nua (1921) de Walter Benjamin, quanto do homo sacer (1995) de Agamben, já sob o neoliberalismo contemporâneo.
Para melhor avaliarmos o ineditismo dessas reivindicações antropofágicas de 1929, cindidas entre Sade e Lao Tsé, que são contemporâneas do primeiro fascículo (A-B) de Hôbôgirin, Dictionnaire encyclopédique du Bouddhisme, dirigido por Sylvain Lévi e Junjirô Takakusu, e cujo redator era Paul Demiéville, futuro membro do Collège de France, pensemos que será preciso esperar até 1934 para começar a explorar, com Marcel Granet, O pensamento chinês, ou mais ainda, até 1947, para ler, em Dialética do esclarecimento de Adorno-Horkheimer ou em Sade, meu próximo de Pierre Klossowski, uma incorporação da crueldade sadiana como contra-cara do progresso tecnológico moderno. Conhecemos a versão de Jacques Lacan, “Kant com Sade”, e talvez seja oportuno relembrar que Lacan estudou chinês durante a guerra, quando frequentou o curso de Paul Demiéville, único discípulo do sinólogo francês Édouard Chavannes, e que só bem mais tardiamente, em 1970, conheceria François Cheng, seu professor de língua oriental. Sabe-se bem que essa empreitada terá muitos efeitos sobre a sua teoria; de fato, ele chegaria mesmo a dizer que tardiamente se deu conta de algo: que talvez só fosse lacaniano porque estudara, antes, chinês, “talvez eu só seja lacaniano por ter estudado chinês no passado”8.
A antropofagia é uma arquitetura do tempo e, já que estamos com colegas do Uruguai, diria que a modernidade de Oswald de Andrade não se limita a uma forma, o simultaneismo de Alfredo Mario Ferrero, nem à reivindicação identitária, na linha de Ildefonso Pereda Valdez, colaborador de Nancy Cunard em Negro: an Anthology (1931-3), coletânea com a destacada, e não menos paradoxal, colaboração de Samuel Beckett (o escritor do silêncio ajudando à comunicação interétnica). Talvez se possa então pensar a antropofagia como algo mais próximo ao anacronismo de Torres-García, cuja estética é também uma arquitetura do tempo.
Tupi, or not tupi that is the question. Essa premissa do Manifesto Antropófago, que lida com a lógica do dizer e do dito, mas também com a lógica da sexuação, prepara aquilo que, com Lacan, conhecemos como o aturdito, l´étourdit, em outras palavras, aquilo que se diga e fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve. Trata-se, aparentemente, de um enunciado assertivo, de caráter universal, mas ele é, no entanto, modal e existencial. O subjuntivo com que se modula o sujeito testemunha a posição de quem fala. Aquilo que se diz está marcado por aquilo que se diga e o dito encontra-se no que se diz e no que se ouve. To be, tupy. Em suma, não há metalinguagem. Estamos, portanto, perante uma absoluta indecidibilidade. É a suspensão (epokhé) das leis. É a recusa do simples discurso de contestação: suspensão do narcisismo: não ter mais medo da imagem (imago), das imagens: dissolver sua própria imagem, que é um desejo que confina com o discurso místico negativo, Zen ou Tao. Entendida assim como desejo, a antropofagia põe, continuamente em cena, um paradoxo: como objeto, ela é suspensão da violência imaginária; mas, como desejo, ela é pura violência efetiva.
Raúl Antelo
Professor titular de Literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina
Notas
↑1 | Texto apresentado em la mesa de diálogo de Calibán, “Antropofagia e depois”, em el 34 Congresso de Fepal, setiembre de 2022. |
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↑2 | ANDRADE, Oswald de “A psicologia antropofágica” in Os dentes do dragão. Ed. Maria Eugênia Boaventura. São Paulo, Globo, 1990, p. 50. |
↑3 | IDEM – ibidem. |
↑4 | JAPY-MIRIM – “De antropofagia”. Revista de Antropofagia. 2° Dentição; n 2, 24 mar. 1929, reiterado em “Algumas notas sobre o que já se tem escrito em torno da nova descida antropofágica em nossa literatura”. Revista de Antropofagia, 2ª dentição, nº4, 7 abr. 1929, p. 6. O modernista mineiro Achilles (assina Aquilias) Vivacqua ainda o reitera em “A propósito do homem antropófago”, ibidem, 1 maio 1929. |
↑5 | “Do Marquez de Sade” Revista de Antropofagia. 2° Dentição, nº 4, 7 abr. 1929. |
↑6 | Revista de Antropofagia. 2° Dentição, nº 5, 14 abr. 1929. |
↑7 | MENDES, Murilo – “Aproximação do terror” in Poesia completa e prosa, Ed. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 431. |
↑8 | LACAN, Jacques (1971) O seminário, livro 18: De um discurso que não seria do semblante. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009, p. 35. |