Eduardo de São Thiago Martins1

No fundo, o que os homens desejam unicamente em relação aos mortos é esquecê-los. 

Rachel de Queiroz, 9 de novembro de 2002

Sob a lona do circo, ao longo de dez minutos que pareceriam horas, imperava o silêncio, exceto pela respiração amplificada da equilibrista que, no centro do picadeiro, dava forma a um grande móbile composto por treze varas de folhas de palmeiras, de diversos tamanhos, que iam sendo pinçadas com os pés e apoiadas perfeitamente, umas às outras, sobre a cabeça da artista. 

O público prendia a respiração. Era como se um espirro, um pigarreio, um suspiro ou um sussurro pudessem mover o ar de tal forma que a obra, delicadamente construída, viria abaixo. A mim, o objeto que dançava sob os holofotes parecia o esqueleto de uma grande baleia, flutuando num espaço de baixa gravidade. 

Eu assistia àquele espetáculo2 ‒ no qual os números circenses se passavam por todos os lados ‒ imobilizado por uma órtese que me protegia dos efeitos de um traumatismo crânio-cervical que eu havia sofrido semanas antes. A vida era delicada, o corpo frágil, e eu tinha tido muita sorte. A “cabeça dura” ‒ como tanto repetiriam os médicos ‒ deixara uma marca no pilar de concreto, que optei por não disfarçar. O tombo doméstico ‒ que só não foi mais risível por ter sido grave ‒ tinha-me feito cair em mim de um modo nunca antes experimentado.

Nos primeiros meses depois do acidente, eu passava por aquela marca com enorme reverência. Muitas vezes tocava-a gentilmente, numa espécie de saudação cúmplice, grata, lembrando-me de minha finitude e sentindo o prazer de ter continuado no jogo. Marquem: prazer sentido por conta de sua própria transitoriedade, não do trauma em si, que ainda me causava arrepios de lembrança, espécie desprazerosa de excitação.

A queda já completou três anos e a marca no pilar continua lá, para que cá eu possa seguir adiante com minhas cicatrizes; um lembrete, palavra graciosa de quando tomamos nota de algo, para podermos esquecer sem nos esquecer. Às vezes, percebo que meu olhar se volta à marca ‒ hoje, bem menos investida ‒ como o olhar de um escritor que busca um crânio deixado sobre a escrivaninha para ajudá-lo a vencer eventuais inibições que uma página em branco venha a despertar. A marca concreta se tornara símbolo. 

Freud recorre ao Monumento, uma grande coluna londrina erguida em memória ao grande incêndio de 1666 que destruiu boa parte da cidade, para explicar aos norte-americanos sobre os mecanismos da histeria, em 1910. “O que diriam os senhores de um morador de Londres que, diante do Monument, pranteasse o aniquilamento de sua cidade natal, embora há muito ela se tenha reerguido com tanto mais brilho?” (Freud, 1910/2013, p. 232).

A palavra monumento, em sua etimologia latina, remete a memória no sentido de um alerta, de uma advertência, como um símbolo mnêmico capaz de presentificação ao tornar-se agente histórico de significação da atualidade, nachträglich3. O monumento é, portanto, um corpo vivo da memória no cruzamento dos tempos,menos afeito às nostalgias e às devoções do que às transformações mundanas. No entanto, para que se possa seguir adiante nesta elaboração, é preciso que as marcas possam falar, que possam agir simbolicamente, pelo tempo que for necessário. 

Quando um grupo de cidadãos põe abaixo o busto de um escravocrata nos Estados Unidos da América (EUA), ou então picha, em spray vermelho-sangue, imagens construídas em homenagem aos bandeirantes, em São Paulo ‒ monumentos amortecidos, embalsamados, noite após noite, pela luz fria e dura dos refletores das praças ‒, este grupo está fazendo o monumento trabalhar (durcharbeiten4) em toda sua complexidade de significante: “Alerta! Este trauma se repete, ainda não foi elaborado.”

O que distingue atos de protesto como estes, daqueles histéricos, é que estes são compreensíveis (pelos dados da realidade), são potencialmente solúveis pelo trabalho de pensar (considerando o pensamento como ensaio da ação, neste caso, política) e são congruentes em sua estrutura (brados de repulsa contra atos de violência), tomando por base os argumentos freudianos desde o Projeto de uma psicologia (Freud, 1954[1895]/1995). Derrubar a estátua é, portanto, fazê-la reaparecer; é recordar, para um dia poder esquecer. 

O direito de esquecer não é dado àqueles que seguem sendo continuamente retraumatizados, seja positivamente ‒ pela via da violência explícita ‒, seja negativamente ‒ pela via do desmentido, da desqualificação da dor ou do desaparecimento. 

Voltando ao circo. Assim que a equilibrista concluía a construção do móbile flutuante sobre sua cabeça, ela o transferia à ponta de agulha de uma vareta apoiada no chão, dava alguns passos atrás para admirar sua obra e, sem titubear, retirava a menor das peças da escultura. Num milésimo de segundo, tudo ia abaixo, aos olhos do público que, ao presenciar a negativação da imagem,percebia-se fortemente marcado por uma ausência-presente. 

Um objeto desaparecido pode deixar marcas negativas indeléveis ‒ uma ausência-ausente ‒ conforme a qualidade de seu desaparecimento. Em Além do princípio do prazer, Freud (1920/2010) designa o terror como “o estado em que ficamos ao correr um perigo sem estarmos para ele preparados” (p. 169), enfatizando o fator surpresa, e distinguindo-o da angústia (como sinal e preparação para o perigo, ainda que desconhecido) e do medo (que se sente frente a um objeto determinado). 

Pesarosamente, sabiam disso as Mães de Maio, e outras tantas Zuzu Angel5) latino-americanas que, desprovidas do direito de esquecer ‒ ou pior, desprovidas do direito à angústia ‒, seguiram vagando em círculos imorredouros, retraumatizadas, a cada revolução fracassada pela cruel ausência de palavras sobre os corpos desaparecidos de seus amores, terrivelmente nunca-perdidos. 

Outro exemplo de violência pela via negativa nos remete ao contexto atual da pandemia. Em meados do primeiro semestre da quarentena, recebo a seguinte mensagem de uma pessoa que vive na periferia de São Paulo: “Estou confusa. É pra usar máscara, ou não? O presidente diz que é frescura…, mas e meus cinco vizinhos que já morreram?”.

Como elaborar um luto frente ao desmentido da própria morte? Lembremos da novilíngua autocrática de Orwell (1949/2009), na qual palavras e sentidos iam desaparecendo para restringir o escopo do pensamento dos oprimidos. Uma vez que não houvesse mais palavras para se referir a algo, estaria extinto. 

Quando um chefe de Nação se dirige aos que não tiveram o direito de velar seus mortos com a frase “Todos nós iremos morrer um dia”6 (G1, 29 de março de 2020), num ato de desqualificação da dor e do medo, ele massifica a experiência da morte e a rebaixa à sua maior crueza, destituindo o sujeito em luto de agentes de elaboração, através da desvalorização absoluta daquilo que lhe seria mais valioso: as marcas simbólicas da perda traumática. 

Não seria justamente essa a qualidade fantasmagórica, de uma ausência-ausente, a do objeto perdido pelo melancólico, cuja sombra recai sobre o sujeito que acaba por mimetizar o desaparecimento súbito e a negatividade das marcas simbólicas ao se defenestrar, por exemplo? Não seriam esses atos negativos de violência os principais envolvidosnas psicopatologias do vazio, ou ainda nas dinâmicas auto-hetero-explosivas dos atos puros, segundo o modelo teórico que Herrmann (maio, 2005) denominou regime do atentado?

Frente à pandemia de violências-negativas que assolam o século XXI, imerso na cultura dos cancelamentos e ghostings da virtualidade, nunca foram tão urgentes as lunetas, lupas e pergaminhos do cigano Melquíades, de Gabo, que ao retornar da morte traz a cura da peste quando faz valer o direito de relembrar, para então poder esquecer, para só então poder se lembrar (García Márquez, 1967/2019). Direito primordial, reivindicado pelos gritos das Antígonas, de hoje e sempre: o direito ao luto. 

Referências

Freud, S. (1995). Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954[1895]). 

Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. Em P. C. Souza (trad.), Obras completas (vol. 14, pp. 161-239). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920).

Freud, S. (2013). Cinco lições de psicanálise. Em P. C. Souza (trad.), Obras completas (vol. 9, pp. 220-286). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1910).

G1 (29 de março de 2020). Após provocar aglomeração durante passeio em Brasília, Bolsonaro volta a se posicionar contra o isolamento social. Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/29/apos-provocar-aglomeracao-durante-passeio-em-brasilia-bolsonaro-volta-a-se-posicionar-contra-o-isolamento-social.ghtml

García Márquez, G. (2019). Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record. (Trabalho original publicado em 1967).

Herrmann, F. (maio, 2005). Da psicose de ação à adição vazia. Em I Simpósio Internacional do Adolescente: Adolescência hoje: Desafios, práticas e políticas. Simpósio promovido pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000082005000100013&lng=en&nrm=abn 

Orwell, G. (2009). 1984. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1949).

Queiroz, R. (9 de novembro de 2002). Culto aos mortos. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20021109-39834-nac-70-cd2-d12-not

Sófocles (trad. em 1990). Antígona. São Paulo: Companhia das Letras. (Obra do século V a. C.).

Notas

Notas
1 Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
2  Amaluna, do Cirque du Soleil. 
3  Referente ao conceito freudiano de Nachträglichkeit; après-coup, no francês, ou “a posteriori”. 
4  Palavra comumente traduzida do alemão como elaboração ou perlaboração. Literalmente, “trabalhar (arbeiten) através (durch)”.  
5  Zuleika de Souza Netto, estilista de moda, foi assassinada durante a ditadura militar brasileira, em 1976, depois de enfrentar as autoridades na procura de seu filho, Stuart Angel, assassinado pelo governo e transformado em desaparecido político. Em 2019, as mortes de mãe e filho foram finalmente atestadas como “não natural, violenta e causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985.” (Revista Época, 09/09/2019 – https://epoca.globo.com/brasil/hildegard-angel-sobre-certidoes-de-obito-da-mae-do-irmao-resistencia-funciona-23937097
6  Fala de J. Bolsonaro em discurso informal, em 29 de março de 2020. 

One thought on “O direito de esquecer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *