Luis Campalans1

O bom, quando breve, é duas vezes bom. 2
Provérbio atribuído a Baltasar Gracián
Oráculo manual y arte de prudencia, 1647

Vamos tentar estabelecer uma relação – tomando a noção do belo como eixo – entre o bem conhecido texto de Freud de 1915 e a noção lacaniana da segunda morte, um termo de Sade que o autor adota e que surge em seus ensinamentos a partir do seminário A ética da psicanálise (Lacan, 1959-1960/1988). Com isso pretendemos produzir interrogações que interessem a nossa experiência, tanto no sentido do interesse como no das suas implicações, do atravessamento.

A transitoriedade

O breve ensaio de Freud, contemporâneo a De guerra e morte (1915/1984a), foi escrito em plena Primeira Guerra Mundial a convite, e para colaborar, ao lado de outros intelectuais de destaque, em um volume comemorativo sobre Goethe chamado El país de Goethe. Em alemão, o material tem por título um único termo: Vergänglichkeit, traduzido como La transitoriedad por Etcheverry e como Lo perecedero por Ballesteros3; também poderiam ser aceitas, como outras traduções possíveis, “o efêmero” e “a fugacidade”. No entanto, em alemão trata-se de um substantivo sem artigo, o que acentua seu próprio peso, sua condição categórica, de “sustentar-se por si mesmo”, por assim dizer. Não é de pouco interesse chamar a atenção sobre a função do prefixo inseparável ver-, de amplo uso na língua alemã, e sua relação com a função, também ampla, da negação (Verneinung), algo que sabemos que faz parte de outros termos transcendentes para a psicanálise, como Verdrangung [recalque], Verwerfung [foraclusão] ou Versagung [frustração]. Apesar da implicação da função de negação não ser tão acentuada como no caso do prefixo separável un- ‒ que vai formar, por exemplo, o Unbewuste [inconsciente], o Unbehagen [mal-estar] ou o Unlust [desprazer] ‒, os gramáticos e linguistas destacam a função chamada adversativa do prefixo ver-, ou seja, a de diminuir, reduzir ou limitar algo em relação ao termo que o precede. Na tradução ao inglês de Vergänglichkeit aparece, por exemplo, impermanence, onde o prefixo mostra melhor essa função da negação do que em castelhano, como aquilo que “não permanece” ou o “não permanente” (Wordreference, 2012).

Lacan foi trabalhando e desenvolvendo, ao longo dos seus seminários, essa função da negação e suas implicações significantes, não só em seu efeito sobre a enunciação, como a forma mais simples e ao mesmo tempo mais eficaz do recalque, mas também quanto à sua função de exclusão, de limite, que produz o real como o que é excluído para além desse limite. Um real que se constitui como efeito do corte do simbólico, e que o levará ao emprego da negação em muitas das suas fórmulas, onde cumpriria essa função de denotar a castração: “não-todo”, “não-relação”, “não-existência” etc. Parafraseando Freud, poderia se dizer que a função da negação é aqui o made in Germany, o selo, a marca da função da castração, operando sobre a própria letra do enunciado.

Em resumo, então, o transitório, o efêmero, o finito é o que se opõe, o que vem a negar e refutar o permanente, o eterno e o infinito, ou seja, o que está situado fora-do-tempo; em outros termos: o que está fora da castração ou o que, na qualidade de ilusão, a desmente. Isso nos leva diretamente à questão da transcendentalidade, isto é, daquilo que transcende ou atravessa, o que está mais além; nesse caso, mais além da morte física, como pretensão e ambição de uma eternidade, de uma “passagem à imortalidade”, que faz parte de forma ineludível da chamada condição humana, condição do “ser falante” em virtude da qual adquire o saber antecipado da sua finitude. 

Vale a pena recordar que Freud deixou bem estabelecido que a morte, como registro subjetivo de um acontecimento, é sempre a morte do outro, do semelhante; tão temida como desejada. Não há nenhuma possibilidade de registro, de inscrição ou de representação da própria morte como acontecimento, dado que isso se situa, por definição, no incognoscível, no real como tal. Não é só que o sujeito não queira imaginá-la, senão que ela é inimaginável: “inacessível”, diz Freud. Como se costuma dizer, o morto é, justamente, aquele que não pode “voltar para contar”, ou seja, contemplar o acontecimento no a posteriori do simbólico.

Toda uma tradição humana, desde sempre, se perguntou e se ocupou do para além da morte, seja ele imaginado como uma beatitude que põe fim a todo sofrimento, ou como um sofrimento sem fim; ambos polos compartilham a aspiração ao eterno. A pergunta quanto à transcendentalidade do sujeito se situa no lugar de causa dos discursos mais ancestrais, desde as religiões, a arte e a filosofia, e não parece, depois de Freud (fora disso que chamam de psicanálise aplicada), ter interessado muito aos psicanalistas. O mais além da morte como espaço introduzido pelas religiões vem selar a divisão entre o corpo e a alma ou o espírito; uma versão mais imaginária do que, no aspecto filosófico, será formulada como a separação entre o ser e o ente.

Sobre isso, Lacan chamou a atenção para as religiões orientais; em particular, o budismo e sua relação com a morte (que inclui o rito do embelezamento do cadáver) depois da sua viagem ao Japão (em 1963); e depois J. Allouch (2009) retomou o assunto em relação com o hinduísmo e seu Moksha, como liberação ou realização post mortem, que é a referência que vai regular toda a vida do sujeito. Convenhamos que, do lado do monoteísmo, a questão do mais além da morte não é inferior; por exemplo, a trilogia céu, inferno e purgatório, cuja maior riqueza e expressividade, provenha talvez da literatura e das artes baseadas na temática religiosa. A divina comédia de Dante ou Paraíso perdido de J. Milton são exemplos clássicos da literatura – particularmente, em verso ‒, assim como na pintura temos a fantasmagoria de El Bosco ou de Brueghel, por exemplo, e já mais na modernidade, essa monumental escultura chamada Porta do inferno, de A. Rodin, em que o belo é literalmente a antessala do horroroso, do inominável.

A função do belo

Diz E. Jones (1960), a propósito de Vergänglichkeit, que esse texto refuta a ideia corrente sobre o pessimismo de Freud e reforça isso com uma observação que ele teria feito oportunamente a Marie Bonaparte, dizendo-lhe:“É esse aspecto eternamente mutante da vida o que faz com que ela seja tão bela” (p. 293). 

Isso não é algo óbvio, de nenhum modo; para muitos – sem ir muito longe, para seus dois interlocutores anônimos do texto de 1915 (há quem diga que o poeta R.M. Rilke seria um deles) –, essa mesma transitoriedade é penosa e inaceitável, e isso que seria formoso, uma alusão ao belo, se torna na verdade horrível. Situar o que aqui estaria em jogo no mero plano do otimismo/pessimismo, como Jones faz, nos parece que seria reduzi-lo a sua verdadeira dimensão: aquela que, em primeiro lugar, diz respeito à relação do sujeito com o objeto de desejo. Veja que, para Freud, o eterno não seria a permanência, mas sim a mudança; que não se trata do novo objeto ou do anterior, mas sim de que o desejo, como diz Lacan (1959-1960/1988), “é a mudança como tal”4 (p. 350). A isso poderia ser acrescentado que não há mudança sem luto, cujas coordenadas Freud começa a introduzir nesse texto a propósito do transitório, e que depois dará lugar a Duelo y melancolía (1917 [1915]/1990). 

Em outros termos, a labilidade e a substituibilidade do objeto (será mais precisamente o amor que vai ancorar o desejo em sua deriva metonímica) deixam entrever que a causa do desejo é só um lugar vazio, e que a possibilidade da sua perda é justamente o que dá valor a um objeto, valor como causa de desejo, e seria também por isso que não há desejo sem angústia. Dando um passo além, e com a mesma lógica, poderia se dizer que o que dá valor à vida é sua condição de finitude, sua condição perecível, e por isso acontece também que não é possível estar vivo sem angústia.

A ênfase de Freud no belo e perfeito nos interessa particularmente, porque ele aborda isso em um sentido inverso em relação ao lugar comum que supõe a eternidade do belo – à ideia de que no belo se aspira à imortalidade, ao que permanece “insensível ao ultraje”5 (Lacan, 1959-1960/1988, p. 287), ao ultraje do tempo e do esquecimento, acrescentaríamos. O “gozo do belo”, diz Freud (1915/1984c), é só “uma significação para nossa vida sensitiva”6 (p. 310), isto é, uma questão estética, em que o efêmero e fugaz, pelo contrário, “acrescenta aos seus encantos outro novo” (p. 310). Será então a possibilidade limitada, finita, do seu gozo aquilo que torna um objeto ainda mais valioso, como, diz de forma bela, “uma flor que brota apenas uma única noite” (p. 310). 

Também será Lacan (1959-1960/1988) quem vai destacar a função do belo como busca ou meta do desejo ligada ao eterno e imortal, mas que ao mesmo tempo funciona como beira ou última fronteira frente ao ominoso, como o véu que encobre e ao mesmo tempo revela e anuncia a finitude do sujeito. Dito em outras palavras, na rota do desejo, essa dimensão última, prévia ao nada, é a do belo, para além de todos os bens. Em sua função de “chamariz do desejo”, o belo seria, pois, o chamariz por antonomásia, por seu efeito cegante, de fascinação, de deixar o juízo em suspenso; o belo como o mais oposto e ao mesmo tempo o mais próximo do objeto a como puro resto real. Assim, Lacan tenta mostrar a relação do significante com a morte através da sua potência criacionista, sublimadora, seu acesso a ela como questão ou tema central do humano, mas já não explícita ou direta, senão por meio de uma forma estética, sensível, como último véu. Isso talvez não possa ser dito de melhor forma do que assim: “A função do belo sendo precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de nos indicá-lo somente num resplandecimento”7 (p. 352).

Essa função do belo é acentuada em sua abordagem da Antígona de Sófocles, que como tragédia vai ainda mais longe do que a do seu pai, Édipo, já que ela, sim, sabia perfeitamente aonde seu desejo a levava. Como exemplo, Lacan (1959-1960/1988) destaca que o Coro, que é quem faz o comentário emocional, não deixa de elogiar o brilho da beleza de Antígona, mesmo que se encaminhe “sem compaixão nem temor” ao suplício e à morte certa. Sublinha isso também como um traço das heroínas de Sade, que não perdem sua beleza, inclusive sua pureza, apesar de serem submetidas às piores abjeções imagináveis. Esse traço pode ser encontrado também em muitos e conhecidos quadros da pintura religiosa medieval e renascentista que refletem os martírios dos diferentes santos e santas, em que se destacam a beleza e o aspecto hierático dos seus rostos em meio aos mais horríveis suplícios. Sua referência exemplar seria, sem dúvida, a paixão, termo com que o relato religioso designa todo o ciclo de acontecimentos que culminam na crucificação, morte e ressurreição de Jesus Cristo – rosto belo como poucos. Isso nos deixaria ver que o tormento e o sofrimento – em sua junção, em sua beira junto ao belo, funcionando como um “fantasma fundamental” ou espécie de “protofantasia”– constituem uma via de acesso privilegiada à ilusão de eternidade. Uma condição de imortalidade que pretendeu ser outorgada também ao amor, apesar de que se deveria fazer a precisão de que se trata mais propriamente do amor perdido ‒ Lacan (2003) menciona a respeito os mitos de Orfeu, Alceste e Aquiles (aula 3) ‒ ou do amor trágico ‒ Romeu e Julieta, Tristão e Isolda ‒ e portanto a segunda morte seria também aquela que ameaça e que se opõe ao amor, enquanto supostamente imortal.

A segunda morte

O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza; pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar a nossos assassinatos a extensão que ela deseja8. (Sade, citado por Lacan, 1959-1960/1988, p. 255; itálicos próprios)

Esse propósito não é só algo imaginado ou buscado pelos personagens sadianos – nesse caso, o do perverso Papa Pio VI da novela Juliette (tomo 4), que é de onde Lacan toma o termo e cujo parágrafo final, lido no curso de 1960 do seminário 7, transcrevemos anteriormente –, senão que também foi formulado como último voto testamentário pelo próprio marquês. Ali se especifica em detalhes que, apesar de ser escritor, dele e de sua obra, da sua memória, inclusive do seu túmulo onde o mato deverá ser reconstituído, não deve restar nenhum rastro ou indício. Procura, assim, garantir que, como sujeito, nas palavras de Lacan (1961-1962/inédito), “seja essencialmente o não-rastro” [pas de traces], que como sujeito seja reduzido ao esquecimento mais radical, ao nada em si.

Essa disposição de Sade (que aparece também em Antígona) indica que essa segunda morte é à que se pode aspirar, como meta do desejo, mesmo depois da morte obtida. O desaparecimento físico do seu corpo não indica o final definitivo do defunto, isso acontece como efeito da sua segunda morte, quando já não subsistir nem permanecer, na ordem simbólica, nada que possa ser atribuído a ele ou que lhe faça referência; ou seja, nada que o evoque como nome. Nesse ponto se produz o aniquilamento (Lacan, 1960-1961/2003, p. 351) daquela potência do significante, reduzindo-a ao nada, a esse “aniquilamento” de que Sade fala. Dito de outra forma: a segunda morte não é uma morte física, senão ontológica, diz respeito ao ser que pretende transcender a primeira. Como bem indica J. Allouch (2009), morrer não é o mesmo que “des-ser” [désêtre]; o deixar de existir não impede em absoluto continuar a perseverar em que o ser seja eterno. Talvez por isso e, em geral, sem que se saiba, talvez a segunda seja a mais temida pelo sujeito em vida, em relação à primeira, que sempre implica alguma ilusão de eternidade, mesmo que seja a de morrer eternamente. Freud (1915/1984a) vislumbra bem esse espaço: “Só mais tarde as religiões conseguiram representar essa vida futura como a mais desejável, a única verdadeiramente válida, e reduzir a vida que termina com a morte em uma mera preparação” 9) (p. 296).

Fora desse dom por meio do qual algumas pessoas podem criar o que chamamos de “obra de arte”, para além do seu valor como mercadoria, ao restante dos mortais só resta como ilusão de transcendência do seu nome, além dos frutos da sua descendência, grandes ou pequenos, os produtos e objetos do seu trabalho. 

A segunda morte já não ameaça com o desaparecimento físico, mas sim com o esquecimento como absoluto, ou seja, com o desaparecimento na dimensão do simbólico. Digamos assim: mais além da primeira, poderia existir a eternidade; mais além da segunda, não há nada mais do que a “nadificação” do real. 

Como efeito da interlocução da sua proposta sobre a segunda morte, e segundo ele mesmo comenta no curso do seminário 8, Lacan (1960-1961/2003) retorna, por parte dos seus ouvintes e alunos, à ideia do chamado espaço ou intervalo do “entre-duas” mortes, e decide adotá-la. Um espaço ou dimensão, essencialmente significante, que se estenderia entre a morte biológica e o nada mais radical, e que poderia perfeitamente servir para definir a posteridade como a ilusão da permanência eterna desse intervalo. Um espaço que contempla a duplicidade, o caráter duplo que possui a questão da morte para o sujeito humano; tema clássico das religiões, dos mitos e da tragédia antiga.

Haveria, então, duas fronteiras, dois mais além. A primeira fronteira, onde a vida termina com a morte física, está ligada a um vencimento biológico, que não se confunde com a segunda, a do mais além do significante, que é, ao fim, a definitiva, a mais decisiva em relação aquilo que implica o ser, porque supõe seu apagamento mais absoluto. Um “entre-duas” fronteiras em relação com a morte em que elas não se sobrepõem nem coincidem, e deixam um espaço irredutível, o que não quer dizer que seja infinito, onde esse ser falante aspira a se eternizar. Em outras palavras: o mais além da morte real que a ideia de uma segunda morte, enquanto instituída como possível, gera como efeito subjetivo, esse intervalo do “entre-duas” mortes, que é no final a dimensão em que o humano transcende. É para lá que nos levará o mais além de todas as religiões (o Céu, o Nirvana, o Walhalla etc.), e isso, claro, sem que nada garanta sua eternidade, porque ela, se existir, está no real entendido como aquilo que está radicalmente fora do significante.

No epílogo do já icônico conto de H. Melville Bartleby, o escrivão (1853/1999), o narrador menciona, como um possível motivo para a conduta enigmática do protagonista, seu trabalho anterior no escritório dos Correios, mais precisamente na seção das assim chamadas “cartas mortas”, ou seja, as não reclamadas, aquelas cujas palavras não chegarão nunca aos seus destinatários e cujo destino é ser queimadas. Não poderíamos dizer que são cartas condenadas a cair sob a segunda morte, algo com que talvez o personagem termine se identificando? “Mensageiros de vida, estas cartas correm para a morte” 10 (p. 115), diz o narrador no epílogo do conto; para uma inutilidade essencial, acrescentou J.L. Borges no prólogo. Se Sade pretendia garantir sua condenação à segunda morte através da destruição da sua obra (que estejamos falando dele é testemunho do fracasso da sua intenção, pelo menos por enquanto), o personagem de Bartleby vai ainda “mais além do mais além”, prefere não ser, simboliza a renúncia absoluta a qualquer pretensão de transcendência. Mostra também, de forma exemplar, que essa segunda morte estaria, na verdade, “antes” da primeira, já em vida, como um puro efeito de habitar na linguagem, deixando ver que não se trata de uma mera sucessão temporal, já que o personagem já foi apagado do simbólico como sujeito, morto em vida, antes de se converter em um defunto.

Fora do exemplo literário que é prototípico, talvez algo semelhante em termos de uma “morte subjetiva” anterior à primeira poderia acontecer, por exemplo, no indivíduo em coma, descerebrado, mas cujo corpo real continua a existir. No entanto, preferimos reservar o termo segunda morte para aquilo que age não sobre o cérebro, mas sim sobre o Outro como lugar ou espaço do simbólico, para a operação de apagamento que intervém sobre o legado das marcas e dos restos significantes de um sujeito, e em particular sobre o seu nome.

A propósito disso, os arquivos de Yad vashem que reúnem os nomes das vítimas da Shoá, os anais judiciais onde estão registrados os nomes dos desaparecidos na América Latina ou o muro do Vietnam Memorial poderiam servir de exemplos dolorosos, dramáticos, da tentativa do sujeito de sobreviver à segunda morte, de subsistir, de se perpetuar, sustentado na pura letra do nome nesse intervalo do “entre-dois”. Talvez nada mais atroz e insuportável para os vivos do que os mortos sem nome; poderiam insinuar que suas vidas não valem um centavo.

Sobre a história

O que quer dizer “fazer história” ou “ficar para a história”? Um lugar comum que nos diz que alguma coisa tem que ser feita para ter um lugar nela, que ali está implicada na dimensão do ato, do acontecimento (seja sublimador ou criminoso), e que isso vai produzir uma inscrição, uma marca na dimensão do significante. Sem pretender abordar completamente a história como conceito e como discurso, basta estabelecer que, enquanto questão especificamente humana, não poderia haver história sem essa dimensão do significante. A ideia do ser, a de dar valor ao ser e à ilusão de que transcenda algo do ser que viveu são inconcebíveis fora da linguagem, que é a própria condição de existência desse ser que se constitui ali.

De volta à Antígona, o castigo de Creonte para a traição de Polinice já morto, seu excesso em relação à lei humana, é deixá-lo insepulto, que dele não fique nem resto nem marca. Pode-se dizer então que se quer castigá-lo com essa segunda morte, que já não se dirige à pessoa, mas sim ao sujeito, através da negação dessa marca funerária que, como resto, “restos humanos”, será o que ficará dele.

Não em vão foi dito que a história e a história da cultura, esse salto mítico entre natureza e cultura, entre a coisa e o símbolo, começa com o ato de enterrar os mortos, com o rito funerário, como um ato propriamente humano já verificável desde os neandertais. O ato dos funerais como tentativa de preservar o “registro do ser daquele que pôde ser situado por um nome”11 (Lacan, 1960-1961/2003, p. 335). Esse registro, mais além de todos os ouropéis e brilhos agalmáticos, imaginários e inimagináveis da vaidade humana (pirâmides, monumentos, obeliscos, panteões etc.), seria essencialmente uma marca ou vestígio escriturário, que em si mesmo não tem sentido e que constitui ou funda a dimensão do simbólico. É então a morte (digamos a primeira), e não o nascimento, o que está no início, no princípio da história, e que viria a inaugurar esse espaço do “entre-duas” mortes em que “ficar na história” seria permanecer nele; ficar, como ser, sendo na dimensão do significante, transcendendo para além da morte e do tempo. A história, por esse viés, poderia ser pensada como a relação desse espaço com o tempo como categorias, mas de forma tal que vem romper a oposição entre a sincronia e a diacronia; o antes é evocado a partir do agora, e acontecem juntos. Dito de outra forma, na pura dimensão do significante as coisas não aconteceram, como no passado perfeito, mas sim que, como máximo, deveriam ter acontecido e estritamente, enquanto falemos delas, sempre estarão acontecendo. Isso também implica pensar a relação desse espaço do “entre-dois” com o tempo como circular, em que a repetição tem seu lugar, ao estilo da “roda do tempo” do budismo e do hinduísmo, em relação a pensar o tempo como linear, com um começo e um final, como na tradição ocidental judaico-cristã.

A proposta de pensar esse “entre-duas” mortes como um espaço-tempo em que se escreve a história se apoia, também, na noção de escrita que propõe J. Derrida (2002) e que define como “a instituição durável de um signo”12, entendido como uma inscrição, um rastro que marca uma origem e funda um espaço onde por apagamento e substituição se escreverá e se reescreverá como o palimpsesto. Acrescenta também que “a instância do rastro” fica instituída “como possibilidade comum a todos os sistemas de significação”13 (p. 60). Portanto, nessa noção ampla de escrita se incluirão não só as formas pictóricas, os ideogramas, os hieróglifos, as escritas fonéticas compreendidas como simples representação da fala, mas também podemos acrescentar a fotografia, o cinema e todas as formas eletrônicas e informáticas de registro audiovisual, enquanto sistemas de significação. O que deve ficar claro é que, para além da forma, da materialidade do registro, o acontecimento em si fica perdido e o que subsiste dele é só essa inscrição [scribere], tornando-se assim o registrado, o próprio acontecimento. Em outras palavras, o acontecimento se constitui como tal somente se é inscrito; ou seja, é tributário da função da inscrição e ela “deve ser concebida em termos de imprensa gutenberguiana” (Lacan, 1961-1962/inédito).

Esses vestígios ou marcas adquirem função de letra só a partir do fato de que são lidas pelo Outro ou a partir do Outro; uma leitura que, enquanto pensada como significante, não vai remeter mais do que a outro significante, razão pela qual nunca poderá esgotar o significado, ou seja, não se poderá dizer nunca tudo sobre algo ou alguém. Em última instância, a história será então uma questão de leitura como interpretação, ou seja, um efeito da função do leitor, que, por sua vez, poderá se tornar autor, e pelo qual a história nos é mostrada como um texto inacabado e interminável, escrito e reescrito por uma infinidade de autores.

Por tudo isso, nesse espaço poderão acontecer milagres e até ressurreições, já não da carne, mas sim de um sujeito e de sua obra, como acontece, por exemplo, em relação a um artista ou personagem histórico, que pode desaparecer, cair no esquecimento, e depois reviver a partir de evocações e releituras para depois voltar a ser esquecido. Tudo isso se aplica ao que poderia ser chamado de “historicizar” no contexto da experiência analítica e, portanto, esse “entre-dois” também será o espaço onde habitam, aparecem, vão e vêm as lembranças, os sonhos e os lutos, sempre ameaçados pelo esquecimento.

Pode-se acrescentar também que a história, enquanto relato, para além do acontecimento como tal e em um sentido estritamente empírico, vai depender da função daquele que deixa registro, que o documenta para a posteridade. Vamos recordar, por exemplo, que a história antiga descansa e se constrói sobre a tarefa transcendental do escriba, uma função altamente qualificada desde os antigos egípcios e que depois foi herdada pelos monges na Idade Média, já que eram os que tinham o saber e, portanto, o poder da escrita. O escriba, que também é um copista – ou seja, escriba de escribas ‒, não só tem uma função administrativa, contável, de arquivo ou de registro; isso é assim na contemporaneidade mas, na projeção histórica, saiba ou não, trabalha para esse espaço do “entre-duas” mortes. Isso é válido também para os testemunhos audiovisuais (fotos, filmes, vídeos etc.) que caracterizam nossa época, aos quais outorgamos um valor significante, enquanto eles são dados a ler ou interpretar, isto é, produzem fórmulas discursivas, enunciações, como efeitos de leitura. O escriba – aquele que registra e deixa um registro como vestígio –, além do escritor e do artista, será então também o fotógrafo e o cineasta; inclusive a massificação da tecnologia faz com que hoje em dia qualquer detentor de um celular possa ser aquele que deixa um testemunho inesperado.

Sobre isso, G. Agamben (2005) diz que sua paixão pela fotografia se deve também ao fato de que ela, através dos rostos anônimos, continua a dar ainda um testemunho de nomes que se perderam para sempre, ou seja, tem valor de último termo, de último registro. Em outras palavras, situa a fotografia como uma fronteira da segunda morte, tanto que fala de “último dia” (p. 34) e do “anjo apocalíptico da fotografia” (p. 34). Poderia retornar aqui, na bela e inocente figura dos anjos como emissários da morte, à essa borda terminal, a esse traço do belo mesmo no ominoso. A rara habilidade de captar essa borda, ou traço, com a fotografia é só para eleitos. Tomemos como exemplos as surpreendentes fotos de Sebastião Salgado ou a clássica foto de Robert Capa da Guerra Civil Espanhola que, ao coincidir com ela no mesmo instante fulgurante, capta a morte do miliciano.

Convenhamos também que aquilo que ficará na história a partir do ato tornado discursivo transcende toda dimensão moral e valoração de justiça, simplesmente porque isso não conta para o significante, situando-se assim nessa margem entre o belo e o horroroso. Para a posteridade ficam tanto Jesus Cristo como Pôncio Pilatos; ficam A filosofia na alcova e a Crítica da razão pura; ficam as Rimas y leyendas e Mein Kampf; ficam “Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín”, como diz um clássico tango de E. Discépolo14. O afã e a conquista imprevisível de sobreviver à segunda morte não distinguem entre “justos e pecadores”, pois só vale como mérito o fato de que se fale deles e enquanto se fale deles; não há aspiração à eternidade, senão no discurso. Pois bem: o discurso seria isso?

Final

Falta ainda, e para propor como questão, a forma em que essa segunda morte intervém, participa na conclusão de uma análise, para além do luto pelo analista, classicamente invocado e que concerne, a princípio, a sua pessoa. Isso não impede em absoluto que o analista como função se mantenha incólume, que “o morto goze de boa saúde” no lugar do avalista do saber. 

O final da análise consistiria, mais precisamente, em desferir nesse “sujeito suposto” a segunda morte que o faça cair, “des-ser”, desse lugar, que é para onde se dirige a demanda, opondo-se assim a uma eternização da transferência em sua particular junção do saber com o amor, o que às vezes, como sabemos, promove o efeito de grupo ou de massa. É justamente aí, na transferência, onde está, a rigor, o que seria preciso matar, derrubar, e que em francês encontra a ressonância do tomber [cair] com o tombe [túmulo].

Sobre isso, e para finalizar, como uma ironia que não deixa de ter seu valor, vai este pequeno achado ‒ profético, poderíamos dizer?: “Lacanismo! Espero que, ao menos enquanto eu viver, esse termo manifestamente tentador, depois da minha segunda morte, me seja poupado”(Lacan, 1961-1962/inédito).

Resumo

Este trabalho se propõe a articular, a partir da adoção da ideia do belo como eixo, o conhecido e breve ensaio de Freud Sobre a transitoriedade (1915) com a noção lacaniana da segunda morte que é introduzida a partir do seminário sobre A ética. Isso nos leva à questão da transcendentalidade do sujeito, o que está mais além da morte física, como uma meta do desejo que forma parte essencial da condição humana. A partir disso, o texto se propõe a pensar uma noção da história como aquilo que se escreve e reescreve em um espaço-tempo designado como o “entre-duas” mortes.

Palavras-chave: Temporalidade, Beleza, Tragédia, Imortalidade, História, Fim de análise.

Summary

This paper aims to articulate, taking the idea of the beautiful as a hinge, the short  well-known  essay by Freud On transience (1915) with the Lacanian notion of the second death, that is introduced from the seminar on The ethics. This leads us to the question of the transcendence of the subject, to what is “beyond” physical death, as a goal of desire, that is an essential part of the human condition.  Based on this, it  is proposed  to think of a  notion of history as that which is written and rewritten in a space-time designated as the “between-two” deaths.

Keyword: Temporality, Beauty, Tragedy, Immortality, History, End of analysis.

Referências

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Vergänglichkeit (2012). Wordreference. Disponível em: https://www.wordreference.com/deen/verg%C3%A4nglichkeit

Notas

Notas
1  Asociación Psicoanalítica Argentina.
2  N. da T.: Aqui e nas próximas citações, a tradução é livre, salvo indicação ao contrário.
3  N. da T. : Em português o título foi traduzido, em todas as traduções de Freud, como A transitoriedade.
4  N. da T.: Tradução de A. Quinet. A tradução corresponde à p. 344 de: Lacan, J. (2008). Em A. Quinet (trad.), Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1959-1960). 
5  N. da T.: Tradução de A. Quinet. A tradução corresponde à p. 290 de: Lacan (1988). Em A. Quinet (trad.), O seminário – Livro VII: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1959-1960).
6  N. da T.: Tradução de J. Salomão. Nesta e nas duas próximas citações, a tradução corresponde à p. 346 de: Freud, S. (1977). Sobre a transitoriedade. Em J. Salomão (trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916).  
7  N. da T.: Tradução de A. Quinet. A tradução corresponde à p. 354 de: Lacan (1988). Em A. Quinet (trad.), O seminário – Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1959-1960).
8   N. da T.: Tradução de A. Quinet. A tradução corresponde à p. 258 de: Lacan (1997). Em A. Quinet (trad.), O seminário – Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1959-1960).)
9  N. da T.: Tradução de J. Salomão. A tradução corresponde à p. 333 de: Freud, S. (1974). Reflexões para os tempos de guerra e morte. Em J. Salomão (trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915
10  N. da T.: Tradução de I. Hirsch. A tradução corresponde à p. 46 de: Melville, H. (2005). Em I. Hirsch (trad.), Bartleby, o escrivão. São Paulo: Cosac Naify (Trabalho original publicado em 1853).
11  N. da T.: Tradução de A. Quinet. A tradução corresponde à p. 337 de: Lacan, J. (1997). Em A. Quinet (trad.), O seminário, livro 7 – A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
12  N. da T.: Tradução de M. Chnaiderman e R. Janine Ribeiro. A tradução corresponde à p. 122 de: Derrida, J. (2008). Em M. Chnaiderman e R. Janine Ribeiro (trads.), Gramatologia. São Paulo: Perspectiva. 
13  N. da T.: Ibidem, p. 56. 
14  N. da T.: Referência a Cambalache, tango de 1934.

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