Raya Angel Zonana Editora-chefe, Calibán, RLP

O trabalho que inicia Calibán Paixão é de Anish Kapoor e cobre a capa deste número. Shooting into the corner é uma obra que se cria infinitamente. Blocos de cera em tom vermelho intenso são lançados com violência por um canhão sobre uma parede branca que os acolhe e deixa-os escorrer sanguínea e livremente. Aos poucos, adquirem formas inusitadas e imprevisíveis, com a cera se transformando indefinidamente e tomando um aspecto sanguíneo e carnal.

Seria pelo sangue, que tantas vezes acompanha as paixões, que a elas associamos a cor vermelha?

Senão vejamos um curto trecho de Em busca do tempo perdido (Proust, 1913/2007) no qual o narrador nos conta que, Swann, perdidamente apaixonado por Odette, mulher livre que o fazia sofrer as incertezas desta paixão,

… sentia muito próximo de seu coração aquele Maomé II cujo retrato por Bellini tanto apreciava e que, sentindo que se apaixonara loucamente por uma de suas mulheres, apunhalou-a, a fim, diz ingenuamente o seu biógrafo, de recuperar a sua liberdade de espírito.” (p. 426)

O fragmento acima, escrito com certa doçura e com uma naturalidade perturbadora, com a leve pena proustiana, exibe a violência que as paixões impõem e o paradoxo que carregam. Prazer e dor, conciliáveis…

Não raro, atos como o de Maomé II surpreendem-nos na atualidade com uma expansão cibernética, atos nos quais supõe-se que o objeto causa de padecimento deva ser eliminado para, assim, voltar-se placidamente à independência e liberdade, à “paz de espírito”.

Apaixonar-se é lançar-se, escapar do cotidiano, viver o surpreendente, entregar-se a algo que se quer ideal. Movimento necessário e vital, tanto quanto perigoso e mortal. Como dosar este binômio se, na entrega, moram juntos, de mãos dadas, inseparáveis, o prazer e a dor?

Os impulsos apaixonados, em seu imediatismo, não dão espaço a dúvidas. As paixões são certezas. Humanos, estamos a elas sujeitos ao buscar uma plenitude que uma vez imaginamos ter nos afastado do desamparo. Ainda que possa ter sido por um instante, uma fantasia, um fantasma, é este sentimento que se busca reencontrar. A suposta plenitude só se conquista com a posse do objeto portador do prazer. A posse pode ser a sua morte; ou melhor, a posse pode ser a sua morte.

Se a paixão busca certezas, é, por outro lado, lábil e incerto o seu terreno – e, assim, sujeito a paradoxos. O ódio sempre assombra o amor e a imagem que se busca ver de si mesmo pode significar a inexistência do outro. Movimentos totalitários de fanatismos apaixonados têm sido o pão nosso de cada dia.

Excesso e falta, prazer e angústia, convivem naquilo que, humanos, sofremos, padecemos ao experimentar paixões, e somos tantas vezes (sempre?) viajantes a navegar mares bravios, levados por ventos de amores, ódios, medos, invejas, ciú- mes, raiva. Como instrumentar estas forças?

Freud nos diz que Eros e Thanatos habitam igualmente as paixões, e que a mediação se faz pela possibilidade de pensar, pela reflexão. Reflexão de mim no outro e do outro em mim. Olhar o outro, considerá-lo, ter curiosidade em conhecer algo além do si mesmo. Tocar e deixar-se tocar.

As paixões são a matéria do nosso trabalho diário; habitam nossa clínica em dramas humanos que vivemos com cada uma das pessoas que nos permitem escutá-las. Em nossa mais nobre ferramenta de trabalho, a transferência, é a paixão que sobrevém. E novamente o paradoxo pois, como percebeu Freud (1905/2016) ao se deparar com este precioso instrumento durante a análise de Dora, a transferência, movimento apaixonado, pode nos conduzir por variados caminhos. Há que estar atento ao vento que sopra neste espaço do “como se” criado entre analista e analisando, à constante ameaça das tempestades narcísicas que assolam o terreno analítico tão propenso às paixões. Apaixonados por nossas teorias, escutamos o outro? É a partir da nossa história pessoal e psicanalítica – desenhada pela análise pessoal, seminários, supervisões e teorias nas quais nos formamos – que construímos possíveis maneiras singulares de instrumentar as transferências, as paixões que povoam nossa clínica e, também, as nossas próprias paixões. É assim que forjamos uma ética própria, nossa possibilidade sublimatória e civilizatória (Azambuja, 2012) – passo fundamental para nos tornarmos psicanalistas e cidadãos.

Assim também uma revista de psicanálise expõe, com sua forma e conteúdo, um pensamento e uma ética.

Calibán envolve em sua feitura uma equipe editorial e um grande número de colaboradores que se distribuem por estas continentais terras latino-americanas e, certamente, o elemento que faz os laços, cobre as distâncias e liga os pontos para criar esta revista é uma boa dose de paixão. Paixão por ideias, pelo texto, pela psicanálise. Mas, acima de tudo, uma ética cunhada por esta paixão, pelo desejo de apresentar e conhecer o pensamento dos muitos psicanalistas que habitam este continente, e que dispõem suas ideias nas duas línguas mães herdadas, já com as entonações mestiças que aqui viveram e dos sons que ganharam ao aqui aportar.

Esta ética se faz ancorada também na linguagem, cerne da cultura que permite, ainda que de maneira precária, conter algo da intensidade das paixões.

Como psicanalistas, é a palavra que nos cabe para instrumentar nosso pensamento, e a ela recorremos para tratar da ambiguidade que se faz ver desde a primeira paixão vivida no contato com aquele que mantém a vida do infans. É o que diz com singular poesia Gómez Mango, psicanalista falecido no início de 2019, em Argumentos: “os sons e silêncios desta paixão, às vezes, só podem se reencontrar nestas línguas íntimas e estrangeiras, a da análise e a da poesia”.

Assim, pelas palavras dos autores que nos acompanham neste número, iremos adentrando o denso tema que é Paixão. Todavia, o terreno das paixões é movediço, e há que se caminhar com cuidado, pois a passagem entre Eros e Thanatos se faz em qualquer tropeço.

É o que descreve Laura Katz ao falar de uma harmonia impossível na ligação mãe e filha, tema também das autoras Luz Abatángelo e Laura Yaser, que propõem um olhar pela clínica. Lila Gomez, explora paixões que se velam e se revelam nas adoções e em suas máscaras. As paixões têm cores fortes, como vemos no texto de Miguel Calmon – Amabam Amare e a erotomania – ou no texto de Fabio Brodacz, que por sua vez, pontua paixões edípicas ao incursionar pelo universo literário da Pastoral Americana de Philip Roth.

O tema Amor, onipresente quando falamos de paixão, é delicadamente aproximado do envelhecimento e da morte pela escrita de Silvana Rea, que o examina por meio do filme do mesmo nome do diretor Michael Haneke, austríaco como Freud, e com um agudo olhar psicanalítico.

Muitas histórias de paixão foram vividas por meio de cartas, e é uma destas histórias que Adriana Ponzoni conta ao tomar por tema a correspondência trocada entre Dr. G. Bose, psicanalista indiano, e Freud, nos levando a conhecer um pouco do caminho trilhado pela psicanálise na Índia.

Assim como a língua espanhola e a língua portuguesa chegaram em caravelas ao atravessar o oceano no final do século XV, a psicanálise deve sua expansão, em parte, ao trânsito que tempos difíceis impuseram e impõem.

Madeleine Baranger, francesa, vem da Europa para a América do Sul no imediato pós-guerra, e seu trabalho floresce na Argentina e no Uruguai, criando uma nova teoria, um novo pensamento, engendrado nas trocas com seu marido Willy Baranger. A paixão, quando consegue escapar de seu frequente destino alienante, chega ao amor e à amizade, criando espaço para trocas fecundas. Em Clássica & Moderna, Fernando Urribarri percorre o pensamento criativo de Madé Baranger com uma precisão de quem pode vivê-lo e estudá-lo com profundidade.

Muitos latino-americanos, entre eles alguns psicanalistas, fizeram o caminho oposto rumo a países europeus, escapando de regimes totalitários que os impediam de viver e de trabalhar.

Gómez Mango foi um destes psicanalistas e, além do texto na seção Argumentos, lembramos um pouco de sua poesia em De Memória, por meio das palavras de dois de seus amigos: Athanasios Alexandridis e Guillermo Bodner.

Tempos sombrios também aparecem no texto que publicamos em Incidente. Narrar e interpretar sonhos – já o sabia Freud – é próprio do humano e humaniza. Em um artigo que conta histórias comoventes, o narrar sonhos é tomado por Paulo Endo como potência de sobrevivência psíquica e física nos terrenos traumáticos de Auschwitz.

Tempos traumáticos e o onírico são também tema do trabalho de Dupuy, premiado no Congresso de Lima, que publicamos em Fora de Campo. Algo não sabido que flutua no universo psíquico surge em sonhos, em palavras que “caem” dos lábios num ato que se necessita falho ou numa atuação que “escapa”.

Mas não são sombrios também os tempos em que ora vivemos? Escrevo este editorial em dezembro de 2019, ano em que eleições apaixonadas e com fortes polarizações políticas em diversos países, e consequentes revoltas em muitos de- les, tomaram conta da América Latina. Haverá espaço para sonhos? Quem poderá ouvi-los?

Uma das autoras de Vórtice, relata o temor de sua paciente em contar à analista sobre seu sonho e suas crenças nos espíritos. Teme o ceticismo dos psicanalistas.

Se vivemos no continente do realismo fantástico, capturado pela literatura no ideário latino-americano em suas paixões desmesuradas e estranhas, como não dar espaço para o místico, o espiritual, se ele toma o imaginário e invade nossa clínica? A seção Vórtice põe em campo esta questão polêmica e muitas vezes evitada por nós, psicanalistas: o místico/espiritual acontece na clínica? Esta dimensão realmente existe?

Este tema é tratado sob diversos ângulos por psicanalistas de diferentes regiões geográficas e teóricas; surge um panorama que expõe a possibilidade de uma reflexão na qual se busca ir além de pré-conceitos, e de encontro a um pensamento psicanalítico atual sem receios de especular territórios considerados tabu.

Esta é a ideia que norteia Calibán em suas seções, propondo ao leitor avançar em leituras que o levem a constituir sua ética como um psicanalista dentro da pólis – atento à política, portanto, como o foi Freud ao observar, desde o início, o lugar da sexualidade das mulheres na sociedade do século XIX.

Chegamos assim ao espaço de diálogo e trocas com colegas que investigam outros campos do saber. Figuras da intolerância é o nome do Dossiê deste número, em que autores se dispuseram a examinar paixões sangrentas que exalam ódios de várias dimensões e alcances.

Alguns destes ódios parecem, inicialmente, de curto alcance; mas, aos poucos, entrando nos textos dos sociólogos, jornalistas, filósofos que escrevem neste Dossiê de Paixões, e atentos ao que vivemos a cada dia, notamos que o narcisismo das pequenas diferenças cava enormes distâncias e produz terrores inomináveis. Discordar, ser diferente, viver paradoxos e contradições é o que nos faz humanos. Assim como parece tristemente humano o prazer de não só discordar do outro, mas aniquilá-lo, exercer sobre ele a crueldade. O vermelho sanguíneo de Kapoor tinge os artigos deste Dossiê.

E num clima de reflexão sobre a crescente tensão que domina o mundo neste final da segunda década do século XXI, chegamos à seção Textual com uma provocativa entrevista que o filósofo francês Alan Badiou oferece aos leitores de Cali-bánsob um lindo título: Filosofia e psicanálise: Strangers in the night. Entre outras ideias, Badiou sugere que uma terceira guerra está se formando (já se iniciou) mas observa também que há forças que trabalham contra ela – forças que se mobilizam contra situações de autoritarismo e contra o armamentismo das grandes potências.

Estas falas de Badiou me fizeram lembrar de uma exposição que vi em Buenos Aires, Sublevaciones,e que em São Paulo teve o nome de Levantes. A curadoria desta exposição foi de George Didi-Huberman e, no catálogo (2017), ele escreve: “Sublevar-se é um gesto. […] No gesto de sublevar-se, cada corpo protesta com todos e cada um de seus membros, cada boca se abre e exclama no não, rejeição, e no sim, desejo.” (p. 33).

Por este gesto de esperança e resistência, escapa-se de um abatimento do qual até aquele instante se padecia. Paixão é padecimento e é também desejo. Desejo que contagia, como nos contagiou a obra pujante de Kapoor que invadiu também os interiores desta edição da revista.

A paixão é sempre um encontro que nos revela e, em sua radicalidade, nos transforma e transporta para novos espaços. Tomemos da ética que construímos para saber habitá-los.

Esperamos que o leitor de Calibán possa acompanhar-nos no entusiasmo que nós, que fazemos esta revista, experimentamos a cada nova edição. Este é o 15º número e, no momento em que ele chega até você, leitor, já estamos envolvidos com a próxima edição, que o encontrará em Montevidéu, no Congresso da Fepal.

Fronteiras, tema do Congresso e do próximo número de Calibán, podem ser impedimentos, barreiras, mas são também estímulos e obstáculos que nos impelem a uma ultrapassagem. Calibán continua a correr. Esperamos, caro leitor, ter sua imprescindível companhia.

Referências
Azambuja, S. C de (2012). Carta a um jovem psicanalista. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(1), 75–85 Didi-Huberman, G. (2017) Sublevaciones. Buenos Aires: Unitref
Freud, S. (2016) Análise fragmentária de uma histeria [Caso Dora]. Em P.C.de Souza (trad.). Obras completas(vol. 6). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)
Proust, M. (2007) Em Busca do tempo perdido: No caminho de Swann. (vol. 1). Em Mario Quintana (trad.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1913)

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