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Paulo Endo *

Numa primeira apresentação de resultados parciais dessa pesquisa (Endo, 2018a, 2018b) procurei apresentar algumas contribuições do pensamento freudiano, entre os anos 1895 e 1900, no que se refere a um conceito de memória que não se restrinja à dinâmica do lembrar ou esquecer. Ambos, para a psicanálise, se situariam no âmbito das experiências da vida consciente e oscilariam entre o consciente e o pré-consciente.

Uma contribuição decisiva da psicanálise, e que a clínica psicanalítica nos permite constatar, são matizes diversos das experiências da memória como: o mal lembrar (os sintomas), o lembrar para esquecer (as lembranças encobridoras), o impossível de lembrar, e o impossível de esquecer (o recalcado) que consagram e permitem reconhecer outras experiências e dinâmicas da memória cujos matizes são inconscientes.

Naquela ocasião, eu dei ênfase à importância que Primo Levi confere aos sonhos em sua literatura de testemunho, e procurei aproximar suas análises às narrativas de sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz2.

Essa segunda apresentação não vai se deter sobre os sonhos especificamente, mas sobre o trabalho daqueles que, de certa forma, os amparavam, os escutavam e se propunham a conferir-lhes algum sentido, tarefa considerada impossível para o sonhador: os assim chamados narradores do destino (fortune-tellers). Difícil definir ao certo o papel que os fortune-tellers tinham nos campos. Na verdade, na própria literatura de testemunho não se dá a eles grande relevo. Um dos méritos dessa pesquisa é justamente contribuir para evidenciar alguns elementos não aparentes em outras pesquisas testemunhais sobre os campos de concentração e extermínio e, especificamente nesse caso, sobre os campos de Auschwitz-Birkenau.

Antes, contudo, são necessárias algumas palavras sobre Stanisław Kłodziński (1918-1990), ex-preso de Auschwitz. Ele foi um médico polonês, pneumologista e sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Tornou-se conhecido, após sua libertação, por alguns escritos sobre Auschwitz e, em particular, por ter criado o Auschwitz Journal of Medicine em 1961, com o objetivo de discutir e debater os campos de concentração nazistas durante a segunda guerra e suas consequências para a saúde dos sobreviventes.

Em 1971, ainda como editor da revista, Stanislaw solicita ao staff do museu Auschwitz-Birkenau que envie aos ex-presos sobreviventes do campo um questionário sobre os sonhos sonhados em Auschwitz. As respostas somaram centenas de sonhos e mais de quinhentas páginas de relatos e respostas ao questionário enviado. Nesse questionário, uma das perguntas elaboradas pelo pneumologista Stanislaw Kłodziński fazia menção aos fortune-tellers. A pergunta onde tal menção aparecia foi assim formulada: O que você pode riadizer sobre a vida no campo e depois (narradores de destino na prisão e nos campos, etc.)?

Os “narradores do destino” eram aqueles que se prontificavam a ler o futuro, prever o amanhã, revelar o fim do infortúnio e, por vezes e mais raramente, preverem desfechos trágicos e a morte. Eram intérpretes de so- nhos, leitores de mãos, leitores de cartas. Por vezes se dispunham a fazê-lo por um pedaço de pão, uma peça de roupa ou qualquer objeto que parecesse útil no campo. Todos itens raros entre os prisioneiros em Auschwitz. Entretanto, para alguns sobreviventes que responderam à pergunta e ao questionário, eles eram apenas meros aproveitadores da

boa fé e do infortúnio vividos pelos presos.

Entre todas as menções relacionadas com os adivinhos ou “narradores do destino” nas respostas ao questionário, há aquelas de ex-prisioneiros que, simplesmente, desdenharam a pergunta dizendo que não haviam encontrado tais narradores do destino em Auschwitz, ou que não davam muita importância para esse tipo de atividade no campo, ou ainda, que os viam como meros aproveitadores dos ingênuos que a eles recorriam. No entanto, apreciações lacônicas e com esse teor são a minoria nas respostas ao questionário.

Abaixo alguns exemplos (Arquivos de sonhos, s. d.)3:

Eu nunca vi nenhum narrador de destino no campo. (Q1/F17)4

Narrações de destino eram muito comuns, especialmente na prisão, mas eu apenas ouvia profecias para matar o tempo, e jamais pensava que qualquer uma delas poderia vir a se realizar. (Q1/M19)

Eu nunca prestei a menor atenção às narrações de destino nas prisões ou nos campos. Como eu via os narradores de destino ciganos serem dragados para as câmaras de gás, juntamente com outros homens eu pensava: se eles não podem ler seus próprios futuros, como poderiam ler o meu? (Q1/M39) Eu sempre pensei na narração de destino como fraude ou enganação. Na melhor das hipóteses isso era um jogo de entretenimento. (Q1/M42)

Diferentemente dos exemplos anteriores encontramos, na maioria dos sobreviventes que os mencionam, grande interesse e importância conferida pelos presos a esses “serviços” realizados no campo gerando por vezes, logo após o despertar, uma corrida aos narradores de destino para ouvir deles o que seus sonhos poderiam predizer sobre seu próprio futuro, sobre seus entes queridos não encontrados e sobre o fim da guerra.

Cito um dos depoimentos:

O trabalho de narração de destino (adivinhação) também poderia conduzir seu praticante às boas graças do superintendente de bloco e do Stubendienst. No outono de 1943, havia uma senhora idosa com baixo número no campo, no lager A em Birkenau, e ela fez fortuna, transformando a adivinhação (narração de destino) quase em uma profissão. Ela teve um grande ganho, sendo paga com ofertas de cuidados. Ela tinha os cartões de adivinhação que ela mesma fizera (de papelão de embalagem). Toda sexta-feira, que supostamente era muito auspiciosa para a leitura de cartas, ela tinha enxames de presos em fila para (falar com) ela. (Q1/F8)

Muitas das menções aos narradores do destino conferem considerável apreço a essa atividade realizada no campo por alguns e, para muitos, foi uma estratégia possível para preservar a esperança, a expectativa de dias melhores e a crença no futuro.
A seguir mais alguns depoimentos (Q1/M6):

Quando fiquei em quarentena em Birkenau tive um sonho de que me lembro bem, no qual eu deveria dirigir um carrinho chicoteando meu cavalo por uma estrada da floresta. O tempo estava quente e ensolarado. De repente, um apito alto nos acordou. Quando me levantei do meu beliche, confiei em meu vizinho, um completo estranho, dando-lhe alguns detalhes do sonho. Ele foi rápido para me levar para o outro lado do quarteirão, onde a narradora de destino local e o leitor de sonhos dormiam.

O homem era, na verdade, um prisioneiro de aproximadamente cinquenta anos, mais velho que nós, de Rzeszów e que usava óculos grossos muito característicos, com os quais ele se importava obsessivamente, como ele próprio admitiu. Eu não o conheci antes, essa foi a primeira vez que o vi.

Depois de ouvir o breve relato do meu último sonho, a cartoman- te me perguntou sobre minha data de nascimento e estudou a palma de minha mão cuidadosamente. Então ela começou a descrever minha situação, e sua história foi a seguinte: “Recentemente, você quase perdeu sua vida duas vezes. Mas isso já passou, você sobreviverá ao campo e logo partirá em uma jornada, mas enquanto estiver no campo, você será como a roda estridente no carrinho. Você sofrerá constantemente, mas voltará para casa e uma pessoa estará ausente em sua casa. Você mudará sua profissão e viverá uma vida longa”. Mas então o apito alto nos mandou entrar na chamada em frente ao nosso bloco. Ficamos um ao lado do outro e eu esperava que ela acrescentasse algo à sua adivinhação, dada a oportunidade.

De qualquer forma, no momento em que ela falou sobre duas situações de risco de vida, fiquei mais interessado. De fato, depois de um dos exames da Gestapo, fui levado ao extremo, pois não queria dizer nada impróprio que pudesse ferir os outros, especialmente considerando que os seres humanos só podem receber um tanto de tortura5. Eu decidi acabar com a minha vida. Eu estava no sótão no quarto andar, cercado pelos meus torturadores, e pulei de uma pequena janela – mas antes de todo o meu corpo estar fora da janela, fui agarrado pelas mãos e pés e arrastado de volta para dentro. Em seguida, fui algemado e jogado em uma pequena cela escura sob o prédio. Lá, eu cortei meus pulsos com uma lâmina de barbear encontrada. Eu sangrei pesadamente, mas não morri porque eles foram rápidos em chamar um médico para me ajudar. A próxima parte da meu relato não está de forma alguma relacionada com esta história.

Quando ouvi a cartomante falar sobre coisas que só eu sabia – a minha si- tuação… encarar a morte duas vezes – fiquei interessado nas suas previsões e comecei a prestar atenção às suas palavras.
Parei na chamada em frente ao quarteirão – o campo em que Schreiber estava lendo o número de prisioneiros designados para o transporte – e ouvi meu número listado entre os outros.
Quando saí da minha fila, a cartomante me chamou: lembre-se, quando você é um prisioneiro, o transporte é uma jornada. Uma coisa se tornou realidade, e assim será a outra, lembre-se disso. Ela estava certa: eu fui transportado, me senti como uma roda estridente, sobrevivi ao campo e voltei para casa.
Eu vi a cartomante mais uma vez no início de 1945, em um campo completamente diferente.

Em muitos casos, e alguns relatos afirmam isso, os narradores do destino acenavam com uma vida possível após os campos, previam que os presos dali sairiam e retomariam suas vidas, indicavam que seus entes queridos ainda sobreviviam em algum lugar e que, no futuro, seria possível reencontrá-los.

Para alguns que ouviam essas palavras era como subverter a máquina de penúria e sofrimento por um instante, era como voltar a viver, a imaginar, aguardar e a desejar um futuro possível. Era como restabelecer em meio ao risco e à vontade de perecer, o devaneio protético do devir e da potência psíquica capazes de colocar em marcha a fantasia, que se estende para além do aqui agora, para além do tempo presente e se elabora num futuro imaginado juntos; mecanismo perdido pelas urgências impostas pela cotidiana penúria do corpo e do psiquismo.

No depoimento desse homem que tentara se matar sem sucesso duas vezes, enquanto esteve em Auschwitz e que sobreviveu e teve uma vida longa como predisse o narrador de destino (o adivinho), a palavra pôde nomear o futuro porque escutou as aflições do presente e juntos, sonhador e narrador do destino, inventaram e imaginaram um além do aqui e agora; impossível no presente, mas possível em outro tempo e lugar forjados junto a uma outra presença humana, para a qual desejos era factíveis, sonhos realizáveis e a morte não era inexorável, uma escuta que alargava as bordas do tempo enquanto a morte rondava. Juntos, sonhador e adivinho, emulavam uma experiência inexistente agora, mas plausível depois; improvável nos campos, mas possível na vida ainda a ser vivida, aguardada e longe de Auschwitz. Algo que pôde ocorrer naquelas circunstâncias especiais e inventadas, em que duas pessoas se amparam para imaginar juntos algum triunfo sobre a condenação mais brutal.

Em psicanálise dizemos: é preciso ao menos dois para escutar o inconsciente (Anzieu, 1989, p. 418; Felman, 2000, p. 27). Em alusão a isso, poderíamos dizer que é preciso ao menos dois para forçar um entre as trancas da comiseração cotidiana, quando a dor e a morte não são eventualidades, mas ameaças constantes e iminentes que gritam assim que os olhos se abrem ou, como diz Primo Levi, assim que se ouve a voz do soldado nazista gritar nos barracões – Despertar! –, selando um destino já ao amanhecer.

Seria então preciso ao menos dois humanos para reencontrar a humanidade no homem que o próprio homem fizera desaparecer.

O que Elaine Scarry observou em sua obra Body in pain (1985) sobre as situações de tortura e a dor imposta em meio à completa assimetria indica o mesmo (p. 164). A dor é uma experiência sem objeto, o imaginar remete a objetos sem a experiência. Como então imaginar em meio ao inimaginável onde impera a iminência do absoluto da dor que destrói e desfaz, traumática e urgentemente, todas as ligações com o mundo e com os objetos? Como criar e inventar num tempo comiserado pela iminência do fim de tudo e da morte? Ou ainda, se por vezes a função da fantasia é saturar o vazio com o trabalho de representação, como preencher as lacunas encerradas pela promessa da morte iminente e do tempo futuro, que não existirá senão encenando o trabalho do fantasiar juntos?

A importância e força desse gesto de comunhão restituía em alguns momentos e, para alguns, um lenitivo para o traumatismo da angústia de morte, precisamente porque a reconstrução de um mundo devassado parecia se reerguer sôfrego, por entre as peças decompostas da devastação ali nesse breve cochichar que emitia quase uma instrução a ser seguida: “não desista agora! “aguente firme” “mais adiante a liberdade, a vida, o amor… nconsegue enxergar?”.

Esse enlace que ao que tudo indica aconteceu muitas vezes entre os narradores de destino e os outros prisioneiros de Auschwitz, parece revelar uma aliança que se realiza na restituição da possibilidade de fazer ressurgir objetos apagados pela dor e o mundo a eles pertinentes, e pedir de empréstimo a imaginação que já não é possível sem a escuta, o amparo e um enunciado advindo dos saberes longínquos e incertos de um estranho (fortune-tellers).

Trata-se de um empréstimo, para forjar e forçar a imaginação do devir a partir dos traços restantes do que já foi vivido e das marcas psíquicas pregressas. A fantasia, nesse caso, se move como esteio da possibilidade de suportar o traumático naquilo que se transfere à figura dos narradores do destino e que eles, por sua vez, suportam e projetam num futuro impossível de imaginar sozinho, mas cuja referência são as marcas do passado ainda ativas.

O devir seria mais que tudo retomar a própria vida, reencontrarse com os seus, retornar à sua casa e à sua cidade.

Os contínuos e constantes golpes no corpo e as privações a ele impostas impossibilitam os processos secundários e a atividade sublimatória que a fantasia também, não raro projeta e torna possível psiquicamente. O corpo em dor se converte numa fonte extrema de necessidades e entra em jogo a pulsão de sobrevivência. Vetor do trabalho psíquico que torna primário e prioritário possibilitar as condições de sobrevivência do organismo tomadas como urgências psíquicas. A premência em alimentar-se, proteger-se das intempéries, livrar-se da exaustão e evitar o próprio aniquilamento drenam o trabalho e a energia psíquica ao ponto da auto-conservação e, não raro, podem lançar o sujeito num estágio pré-narcísico de esvaziamento e aniquilação do eu.

Assim testemunha um sobrevivente (Q2/F85):

Como na prisão, era impossível dormir normalmente nos campos. [Como] você poderia dormir, relaxar e descansar?
Estávamos famintos e sedentos. Dormíamos com roupas úmidas de neve, chuva e neblina. Dormíamos com outras sete mulheres num beliche inferior, médio ou superior, ou – mais tarde – num barracão de madeira em Birkenau. Sentia tanto frio que acordava no meio da noite, e era forçada a caminhar até o distante barracão sanitário. Dormia entre a fumaça das chaminés dos crematórios. Dormia tão perto da rampa que dava para ouvir todos os trens que chegavam para descarregar outro transporte de pessoas.

Ao se encontrarem, subjetivamente aliados às previsões dos narradores do destino, muitos presos reencontravam na escuta ao seu padecimento e desespero, e no aqui e agora do campo, uma pausa que encenava os narradores como fiadores do tempo, predizendo que o sofrimento e a atrocidade não durariam para sempre, cederiam e, em algum tempo não muito distante, passariam.

Reestabelecia-se assim, por instantes, a partir da afirmação e da aposta dos narradores de destino de que esse tempo podia ser previsto, vivido e imaginado, o direito e o sentido de esperar, de persistir. O sentido dessa espera viria acompanhado pelo desejo de ainda estar aí quando o tempo do sofrimento chegasse ao fim,

Como observa um dos sobreviventes (Q2/M76):

Deveríamos ser gratos aos narradores de destino (adivinhos), leitores de so- nhos, profetas e poetas porque acendiam lampejos de esperança no deses- perado deserto espiritual, em nossos corações agonizantes. Eles nos fizeram acreditar que o bem pode prevalecer sobre o mal, a justiça sobre a ilegalidade e a violência. Somente aqueles que passaram pelo horror da depressão, o tormento da melancolia, a escuridão do desespero inconsolável, somente eles podem saber quanta paz e alívio essas informações – ver a luz do sol por trás das nuvens, o boato sobre as forças aliadas pressionando as linhas de frente – que entravam em nossas almas [ilegível] traziam.
Tratava-se também, e em muitos casos, de um instante de reconstrução e de esperança no porvir, amparado por um desejo de restituir o passado que o sujeito psiquicamente ainda guarda: voltar à vida que se tinha antes do campo6.

No absurdo da bestialidade da tortura se condensavam a impropriedade do próprio corpo, rompido pela força bruta, e a impropriedade da experiência temporal, realizada pelo sequestro do tempo pelos torturadores: “eu tenho todo o tempo do mundo” é uma frase repetida de muitas maneiras pelos que praticam a tortura.

Ataca-se, desse modo e cotidianamente, o torturado com a radicalidade que torna insuportáveis os processos de dor e morte quando, na cena da violência, um tem a eternidade e o outro a espera; um tem tudo e o outro nada.

Lembro-me e associo aqui um fato que me ocorreu a partir de um exemplo de Françoise Dolto7, ao qual acrescentarei minha própria interpretação, a respeito da criança que experimenta prazerosamente os primeiros passos de marcha e o incipiente controle cenestésico, acompanhada pelo olhar expectante dos pais e que, ao se desequilibrar bate a cabeça num mobiliário e chora, por vezes, desesperadamente (Dolto, 1992).

A criança sente uma dor inédita, uma dor nunca sentida e fora dos registros psíquicos ensejados pelas experiências anteriores, às quais não pode recorrer e se desespera porque, por vezes, falta-lhe o sentido do tempo que passa e a representação de um corpo futuro sem dor. Como frequentemente ocorre, um adulto sensato coloca-se ao lado da criança e lhe diz: “Vai passar, vai passar”.

Nesse momento, esse adulto interpela a experiência da dor que não cessa e se torna um fiador do tempo futuro. Aquele que garante que um outro tempo sem dor é possível e existe, convidando a criança a acreditar na mesma coisa, pautada por sua presença e por sua própria experiência, na qual a criança frequentemente confia, e assim, se acalma. Entende que o futuro se construiu ali mesmo enquanto um adulto a ajudava a suportar o tempo presente.

Em parte, talvez, estejamos no registro de uma experiência muito próxima àquela na qual, na ausência de todas as referências, inclusive os familiares, no instante da tortura e da privação, os registros de gozo parecem desaparecer atacados pela imposição continuada da dor. Por vezes o preso busca na passagem do tempo o sentido para permanecer vivo aqui e agora, e luta contra o imperativo que lhe é imposto continuadamente: “a penúria que vive aqui e agora não vai passar, vai durar eternamente”.

O sobrevivente em Auschwitz, como vimos, combate tal assertiva no ato em que troca o raro pedaço de pão que tem nas mãos e que lhe aplacaria a fome imediatamente, para obter de volta a possibilidade de imaginar-se para além do tempo presente e do cativeiro das necessidades imediatas, contrariando sua experiência de aniquilação, dor e penúria aqui e agora e, de certo modo, ultrapassando-a.

A oposição entre prazer e realidade, revela-se nesse ponto como uma oposição entre o imaginar-se além dos muros da realidade da morte, do extermínio, da calcinação dos corpos em Auschwitz Birkenau e uma pós realidade na qual o real da morte anula e arrasa qualquer possibilidade de trabalho psíquico, matando e imobilizando o psiquismo enquanto tal. O horizonte que se abre entre o prisioneiro de Auschwitz e os narradores de destino revela então que a fantasia reencontra um ponto de passagem no tempo consagrado à escuta do tempo futuro, em que a possibilidade da fantasia se engendra como esperança compartilhada na reconstituição de um passado para sempre perdido.

O tempo da fantasia é o tempo do desejo. Se no tempo da neurose a interpretação do que se fixa como defesa, ante a impossibilidade de sustentação da falta, restaura pensamento lá onde havia repetição; no tempo do trauma seria preciso restituir verdade comum, compartilhada àquilo que o ato de fantasiar criou quando era impossível imaginar, criar, inventar e projetar.

Num caso a fantasia fixa o sujeito num hiato entre o prazer psíquico e o prazer objetal obturando fendas; no outro é ela quem pode instaurar o ponto de fuga no qual, sob a total ausência de indícios da vida futura e a iminência da morte, a palavra reencontra seu sentido ao ser proferida para fundar um consenso, uma experiência partilhada sobre a possibilidade e a exequibilidade do devir.

É possível supor que a pulsão de sobrevivência (Endo, 2005) preside a dinâmica fantasmática diante dos limites nos quais o desejo de não desejar se instaura, por vezes, definitivamente. Nesse ponto, em que as marcas mnêmicas do erotismo parecem evanescer ante a dor, imaginar um futuro repleto de passado se consagra como experiência extraordinária, abrindo frestas de calor e ligação em meio ao frio e à escuridão.

Observa um sobrevivente de Auschwitz (Q2/F85):

Lembro-me de que muitos sonhos eram dominados pelo desejo de comer e aqueles sonhos que mais tarde compartilhei em detalhes com outros detentos. No campo, costumávamos contar nossos sonhos uns aos outros e algumas garotas os explicavam para nós. Lembro-me de que a maioria das explicações foi muito gentil, ou seja, as cartomantes asseguraram aos sonhadores que suas famílias estavam bem e muitas vezes previam [ilegíveis] sem os alemães e um retorno à vida normal.

Impressiona essa aproximação entre o alimento que sacia a fome e que se alia, na intepretação do fortune-teller a uma outra saciedade, brindada pelas experiências que o tempo trará de volta a partir das marcas do que já foi vivido e psiquicamente inscrito. Ambas vitais, ambas urgentes e justapondo no mesmo registro o desejável e o necessário.

A promessa de permanecer em espera e reassegurados de que, em algum tempo, voltar para a própria vida será possível, articula-se ao que a narração do sonho instaura: a busca continua do liame estendido pela escuta de outrem e, apenas por isso convertida em narração. Recriam-se os bons agouros da intimidade e das promessas que os sujeitos fazem entre si inventando, quando estão juntos, uma outra verdade que a realidade lhes sequestrou.

Um sopro de vida é inalado e o tempo que ele instala implode o instante, que se converte em paisagem reminiscente de um porvir que revela em ato, o viver como um desejo compartilhado e como continuidade.

* Psicanalista, pesquisador e professor livre-docente da Universidade de São Paulo.

Resumo
Esse artigo apresenta resultados parciais da pesquisa intitulada Sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz sediada na Universidade de Gdansk e que reúne pesquisadores de quatro países distintos: Polônia, Brasil, Finlândia e Itália. A coleção de sonhos de ex-prisioneiros do Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau será a principal fonte das interpretações presentes no artigo. Discuto aqui a presença e o papel dos adivinhos no lager como restauradores do sonho, da fantasia e da sobrevivência psíquica num contexto de extermínio.

Palavras-chave: Psicanálise, Tempo, Trauma. Candidatas apalavra–chave: Auschwitz, Elaboração onírica.

Abstract
This article presents partial results of the research entitled Dreams of former Auschwitz prisoners conducted at the University of Gdansk which brings together researchers from four different countries: Poland, Brazil, Finland and Italy. The collection of dreams of former Auschwitz prisoners of the archives of the Auschwitz Birkenau Memorial and Museum is the main source for the analysis and interpretations present in this article. I discuss the presence and role of fortune-tellers in the lager as restorers of dream, fantasy and psychic survival in a context of extermination.

Keywords: Psychoanalysis, Time, Trauma. Candidates for keywords: Auschwitz, Dream development.

Referências
Anzieu, D. (1989). A autoanálise de Freud e a descoberta do inconsciente. São Paulo: Artes Médicas.
Arquivos de sonhos (s. d.). Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau, Auschwitz. Dolto, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva.
Endo, P. C. (2005). A violência no coração da cidade: Um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta/ Fapesp.
Endo, P. C. (2010a). O debate sobre a memória e o corpo torturado como paradigma da impossibilidade de esquecer e do dever de lembrar. Em U. C. Santander (org.), Memória e direitos humanos. Brasilia: IGE.
Endo, P. C. (2010b). Partilha, testemunho e a insistência e a impermanência do dizer. Em G. Milán-Ramos e N. V. de Araújo Leite (org.), Terra-mar: Litorais em psicanálise. Escrita, cinema, política e educação (pp. 153-163). Campinas: Mercado das Letras.
Felman, S. (2000). Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. Em M. Selgimann e A. Nestrovski (org.), Catástrofe e representação (pp. 13-71). São Paulo: Escuta.
Scarry, E. (1985). The body in pain: The making and the un making the world. Nova York: Oxford University Press.

Notas

Notas
1 Optei por traduzir fortune tellers como “narradores do destino” ao invés de, por exemplo, “adivinhos” que carrega em português um significado pejorativo e eivado de preconceitos. Entendo que a função dos fortune tellers nos campos passava, muitas vezes, ao largo dessa função e papel imaginado e definido pelos preconceitos. Considero que narrar destinos interrompidos, dar continuidade à nomeação e à espera que o tempo enseja, indica melhor o que pretendo enfatizar nesse artigo.
2 Esse trabalho fará parte de um livro a ser publicado proximamente no Brasil e, em inglês, após o término da primeira fase dessa pesquisa coordenada pelo professor Wojciech Owczarski.
3 Todos os depoimentos foram extraídos dos Arquivos de sonhos da Biblioteca do Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau traduzidos da língua polonesa para a língua inglesa. A versão em polonês encontra-se no Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau, a versão inglesa ainda está em preparação para futura publicação. Essa última versão vem sendo trabalhada no âmbito do projeto Auschwitz prisoners’ dreams. Apoiado pelo governo da Polônia e coordenado pelo professor Wojciech Owczarski da Universidade de Gdansk. O projeto de pesquisa tem também como pesquisadores principais Paulo Endo (Universidade de São Paulo), Katja Valli (Universidade de Turku) e Marco Zanasi (Universidade de Roma).
4 N. da E.: As letras Q, F e M equivalem respectivamente a Questionnaire, Female e Male. Os números se referem à ordem em que estão nos Arquivos de sonhos.
5 Aqui a frase parece incompleta. Provavelmente o prisioneiro se refere a uma das sessões de tortura praticadas pela Gestapo (Geheime Staatspolizei) à qual ele foi submetido.
6 Em trabalhos anteriores sobre a experiência da tortura (Endo, 2010a, 2010b) indiquei, a partir de alguns relatos de ex-presos nos cárceres da ditadura civil-militar brasileira que vigorou entre 1964 e 1985 no Brasil, essa letargia do tempo cravado pela dor que produzia, no preso e no torturado, o colapso do corpo e da morte sempiterna, retirada da experiência do tempo compartilhado e dos acontecimentos que se sucedem. Remeto o leitor aos referidos textos na bibliografia indicada ao final do presente trabalho.
7 Refiro-me aqui à experiência de automaternagem da criança e ao conceito de imagem dinâmica que se constitui como uma imagem desejo calcada no advir, num tempo futuro. Nesse caso, no desejo de cessar a dor.

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